sexta-feira, 6 de junho de 2014

Transexualidade - a quebra de paradigmas




Otavio J. Zini Vieira[1]
Mariana Barbosa de Souza[2]

A evolução e a complexização das relações sociais trouxe a necessidade da discussão de temas que antes eram considerados secundários, tabus ou mesmo dispensáveis para o Direito. A transexualidade é um destes temas que envolvem as mais diversas áreas do conhecimento, sendo imperiosa uma análise jurídica aliada a outros ramos da ciência para a efetivação dos direitos fundamentais destas pessoas que, na maioria das vezes, são taxadas de ‘anormais’, sendo forçadas à margem da sociedade. Trata-se, também, do aspecto ético e penal, bem como o dever do Estado em garantir a saúde da pessoa transexual. Por outro lado, o sistema jurídico não é só composto de normas jurídicas, mas envolvem costumes, ideologias e a maneira pessoal de reação ao tema presente nos seus operadores, ou seja, aqueles que dão vida à norma interpretam-na, aplicam-na. Eis aí o enlace necessário que o aspecto jurídico precisa ter com a bioética.

Somente a partir do enfoque bioético livre de dogmas é que a transexualidade poderá progredir, livrando-se de enfoques já ultrapassados, a fim de revalorar o que informam as regras sociais, tais como os princípios bioéticos de beneficência, autonomia e justiça, que resguardam a dignidade humana e propõem a diminuição do sofrimento humano, num âmbito de tolerância. A falta de uma perspectiva bioética tem feito das pessoas transexuais vítimas da intolerância e ignorância humana. O percurso dos interessados não é fácil e encontra óbices de diversas ordens, possuindo, por vezes, no Poder Judiciário, a consolidação do sofrimento.

 1 Sexo, identidade de gênero, sexualidade e transexualidade

 Primeiramente, necessário proceder a diferenciação de sexos (genético, genital, gonadal) dentro do modelo biológico, além da sexualidade e identidade de gênero dentro dos diversos modelos bioéticos.
"Quando o homem atribuía um sexo a todas as coisas, não via nisso um jogo, mas acreditava ampliar seu entendimento: - só muito mais tarde descobriu, e nem mesmo inteiramente, ainda hoje, a enormidade desse erro. De igual modo o homem atribuiu a tudo o que existe uma relação moral, jogando sobre os ombros do mundo o manto de uma significação ética. Um dia, tudo isso não terá nem mais, nem menos valor do que possui hoje a crença no sexo masculino ou feminino do Sol." (NIETZSCHE, 2008, p. 27)

 A confusão entre homossexualidade e transgeneridade é algo generalizado, tomam sempre que um menino com comportamento mais feminino, com certeza está treinando ou corre o risco de ser "viado", "bichinha", "baitola", "bambi" (todos os termos usados para depreciar os homens gays), de igual modo as meninas com comportamento mais masculino correm o risco de ser “caminhoneira”, “sapatão”, “machorra” (todos os termos usados para depreciar as mulheres gays).

Essa confusão nega que existamos antes de nossas sexualidades, que tenhamos uma identidade independente dessa sexualidade, que nos identificamos com um gênero e que isso independe do campo do afeto e desejo.

Outra confusão muito comum é a que trata da identidade de gênero e as diversas classificações sexuais.

 2 Sexos biológicos e intersexualidade


O significado da palavra sexo, de acordo com o Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (1986, p. 1.580), originária do latim sexu, consiste na “conformação particular que distingue o macho da fêmea, nos animais e nos vegetais, atribuindo-lhes um papel determinado na geração e conferindo-lhes certas características distintivas”. Diz respeito, portanto, aos aspectos biológicos apenas. Podemos entender, então, que sexo é diferente de sexualidade e identidade de gênero.

O sexo de uma pessoa era identificado inicialmente apenas por estruturas externas (sexo genital), a presença de pênis ou vagina determinava a que sexo pertencia o indivíduo, caracterizando também o gênero (GUERRA-JÚNIOR, 2009). A existência de indivíduos intersexuados antagonizava esse binarismo, com a descoberta da genética e dos cromossomos sexuais, uma nova definição se inicia, o binarismo ganha novo contorno, a presença de determinado par de cromossomos sexuais XX ou XY determinaria o sexo (sexo genético), entretanto a ocorrência de monossomia (Síndrome Turner) e de trissomias (síndrome do triplo X, síndrome de Klinefelter), antagonizam novamente este binarismo, mesmo com o uso de ambas as características não se tinha uma classificação unitária (QUAGLIA, 2009), a embriologia e a fisiologia molecular trazem nova luz ao dilema, marcadores hormonais além da presença das gônadas (ovários e testículos) passa a fazer parte na determinação sexual (sexo gonadal), mas novamente a presença de variantes intersexuais questiona o binarismo sexual de masculino e feminino (CERQUEIRA e VERRESCHI, 2011).

Acerca da intersexualidade segue quadro explicativo:
Quadro 1 - Intersexualidade
Feminino com virilização
Gônadas
Ovários
Genitália externa
Com espectro variável de masculinização
Genitália interna
Feminina (com útero)
Masculino com subvirilização
Gônadas
Testículos
Genitália externa
Variável
Genitália interna
Masculina (sem útero)
Intresexuado verdadeiro
Gônadas
Ambas – Testículo e ovário a cada lado ou ovotestis
Genitália externa
Variável – ambígua
Genitália interna
Variável – com assimetria dos genitais internos e com útero
Digenesia gonadal mista (contém elementos masculinos e femininos)
Gônadas
Indiferenciadas (em fita)
Genitália externa
Variável (virilização discreta)
Genitália interna
Variável (com útero)
Digenesia gonadal pura 46, XX (contém somente elementos femininos)
Gônadas
Indiferenciado (em fita)
Genitália externa
Feminina
Genitália interna
Somente estrutura feminina (com útero)
Digenesia gonadal pura 46, XY (“sexo reverso” contém elementos femininos e resquícios masculinos)
Gônadas
Indiferenciada ou disgenética com aspecto testicular(em fita ou não)
Genitália externa
Feminina
Genitália interna
Estruturas embrionárias (com útero ou restos mullerianos rudimentares)

Fonte: adaptado de (CERQUEIRA e VERRESCHI, 2011)
    A intersexualidade pode ser caracterizada de duas formas a genital interna ou externa e gonadal, as principais formas são: feminino com virilização, masculino com subvirilização, intersexualidade e digenesia gonadal.


3 Gênero, identidade de gênero e papel de gênero


Ser masculino ou feminino, homem ou mulher, é uma questão de gênero. Deste modo, o conceito primaz para identificarmos homens e mulheres é o de gênero.

 Ora, o indivíduo não pode ser pensado sozinho: ele só existe em relação. Basta que haja relação entre dois indivíduos para que o social já exista e que não seja nunca o simples agregado dos direitos de cada um de seus membros, mas um arbitrário constituído de regras em que a filiação (social) não seja nunca redutível ao puro biológico (HÉRITIER, 1996, p. 288).

 Enquanto sexo é um conceito principalmente biológico, gênero é um conceito essencialmente social, sendo sua construção e representação apresentada das mais diferentes formas, pelas diferentes culturas. Gênero vai além dos sexos: Sua definição não se restringe apenas aos cromossomos, a conformação genital ou a presença ou não de determinadas gônadas, mas principalmente através da auto-percepção e da forma como a pessoa se expressa socialmente. O que importa na composição e definição do que é ser homem ou mulher, é o construto psicossocial produzido pela autodeterminação em conjunto com a normativa imposta socialmente pelo papel de gênero.

 Ele não remete apenas a ideias, mas também a instituições, a estruturas, a práticas cotidianas e a rituais, ou seja, a tudo aquilo que constitui as relações sociais. O discurso é um instrumento de organização do mundo, mesmo se ele não é anterior à organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primária, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é a causa originária a partir da qual a organização social poderia ter derivado; ela é mais uma estrutura social movediça que deve ser ela mesma analisada em seus diferentes contextos históricos (SCOTT, 1998, p. 15)

 Identidade de gênero é caracterizada pela forma como o indivíduo se identifica dentre os papéis de gêneros normatizados socialmente, i.e., a coadunação pessoal dentre as posturas socialmente definidas para cada gênero.

Papel de gênero pode ser definido como o conjunto de performances que expressam e são aceitos dentro de determinada sociedade como pertencentes a este ou aquele gênero, as características constituintes destes papéis são tão várias quanto o número de culturas existentes, a exemplo disso podemos citar desde vestuário (o kilt na Escócia é uma vestimenta masculina, no Brasil, seria considerado feminino), posturas propriamente ditas (mulheres de países nórdicos têm características que, para nossa cultura, são tidas como masculinas) ou adereços.

 4 Sexualidade

O senso comum, fundamentado fortemente em crenças e valores pessoais, induz a argumentos como o que confunde opção sexual com orientação sexual. Quando é referida opção a uma pessoa isto significa que esta opta por algo, ela faz uma escolha voluntária entre várias ou, no mínimo, entre duas possibilidades. As pessoas com orientação homossexual não optam por se apaixonar e se relacionar intimamente com pessoas do mesmo gênero, isto porque o desejo afetivo-sexual não é passível de escolha, sendo assim na homossexualidade o desejo é voltado a pessoas do mesmo gênero, de igual modo ocorre na heterossexualidade, em que o desejo afetivo-sexual é voltado a pessoas do gênero oposto e na bissexualidade ele ocorre para ambos (PARANÁ, 2009).

Observamos que os sujeitos podem exercer sua sexualidade de diferentes formas, eles podem viver seus desejos e prazeres corporais de muitos modos. Suas identidades sexuais se constituiriam, pois, através das formas como vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo gênero (homossexuais), de gênero oposto (heterossexuais), de ambos os gêneros (bissexuais) ou sem parceiros/as (assexuados).

Deste modo temos que a orientação sexual depende diretamente do gênero ao qual a pessoa pertence/se identifica e o gênero da pessoa desejada e como o gênero não está diretamente ligado aos sexos biológicos pessoas transgêneros podem apresentar toda gama de sexualidades possíveis

Ao dirigir o foco para o caráter "fundamentalmente social", não há, contudo, a pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, deste modo, a biologia não é negada, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas. Como diz Robert Connell (1995, p. 189), "no gênero, a prática social se dirige aos corpos". O conceito pretende se referir ao modo como as características sexuais são compreendidas e representadas ou, então, como são "trazidas para a prática social e tornadas parte do processo histórico".

Pretende-se, dessa forma, recolocar o debate no campo do social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações entre os sujeitos. O conceito passa a ser usado, então, com um forte apelo relacional já que é no âmbito das relações sociais que se constroem as sexualidades.

Vale salientar que sexualidade esta relacionada ao desejo afetivo-sexual e não ao ato sexual, deste modo a prática sexual não influencia na caracterização da sexualidade do indivíduo dizendo respeito no máximo a fetiches.




5 Transexualidade

Serano (2009) define a existência de duas possibilidades em se tratando da forma de percepção do nosso próprio gênero. Quando o gênero ao qual nos identificamos é o mesmo atribuído após o nosso nascimento através da observação dos nossos sexos biológicos somos cisgêneros (o termo “cis” significa algo como “mesmo lado”) ou quando a representação de gênero que nos identifica não é a atribuída após nosso nascimento, somos chamados de transgêneros (trans significa atravessar ou ir ao lado oposto).

As terminações “cis” e “trans” são úteis em publicações voltadas para questões de gênero, pois serve como uma estratégia para romper com a noção de que indivíduos trans são “diferentes”, colocando em pé de igualdade ambas as “categorias”.

Em resumo, os transgêneros são pessoas que biologicamente pertencem a um sexo definido, mas psicologicamente pertencem e identificam-se a outro se comportando segundo este. O transgênero acredita peremptoriamente pertencer a um gênero não coadunado aos diversos sexos conhecidos (sexo genético, sexo genital, sexo gonadal). Vive, se comporta e age como este gênero (SERANO, 2009). Para ele, o reconhecimento a seu nome social, a sua identidade de gênero e a sua condição são no mínimo básicos para uma dignidade plena.

Esta inadequação entre genótipo e identidade de gênero não pode ser considerada com uma anomalia, ela apenas não corresponde aos ditos ‘padrões de normalidade’ previamente estabelecidos pela sociedade, com isto, surge a diferença baseada apenas em um parâmetro hegemônico ou mais forte.




6 Transexualidade e o direito

 Temos como grande problemática deste trabalho o fenômeno social da transexualidade/travestilidade versos a posição imatura seja da doutrina ou da jurisprudência, principalmente no tocante ao tratamento penal e civil a transexuais e travestis, trazendo a baila deste modo uma discussão de singular importância relativa ao direito à isonomia e a digno tratamento, uma das matrizes fundamentais do constitucionalismo moderno, evidenciando o quanto esse parâmetro pode ser cruel e o quanto é preciso ir-se além da própria ideia de diferença, observando a multiplicidade de singularidades, de expressões e de formas de ser do sujeito.

Dentro das diferenças entre as diversas transexualidades e a travestilidade pode ser caracterizada pela forma de encarar a adequação genital a identidade de gênero.

Travestis são pessoas que nascem identificadas com um sexo masculino, mas que se vestem, vivem e assumem cotidianamente comportamentos femininos e buscam modificar seus corpos sejam com injeções de hormônio, aplicações de silicone e outras cirurgias plásticas, mas não sentem desconforto algum com seu sexo de nascimento, por outro lado transgêneros nascem identificadas com um sexo e assumem comportamento de outro gênero, na grande maioria das vezes sentindo desconforto ou mesmo aversão à sua genitália ou a outras características (seios no caso de transhomens) (BEEMYN e ELIASON, 1996).

Travestis aderem ao gênero feminino e assumem o mesmo papel social, podendo algumas serem ambíguas, tendo, por vezes, sua identidade social/sexual masculina e feminina coligadas interagindo muito bem com essa dualidade, independente da orientação sexual, travestis e transexuais, podem ser heterossexuais, bissexuais ou homossexuais, ou seja, relacionar-se sexual, amorosa e afetivamente com homens ou mulheres sejam eles “cis” ou “trans”, sem qualquer encargo de consciência ou transtorno psicológico (BEEMYN e ELIASON, 1996).

Travesti hoje em dia no Brasil se refere principalmente à pessoa que apresenta sua identidade social oposta ao sexo designado no registro civil de nascimento, mas que não almeja, de forma alguma, se submeter à uma cirurgia de transgenitalização ou readequação de sexo - CRS.

O termo travesti (do latim “trans”, cruzar ou sobrepassar, e “vestere’’, vestir) tem origem na língua francesa no vernáculo travestie e referia-se à forma de se vestir em casas de espetáculos na França, onde mulheres se apresentavam com roupas pequenas, sensuais e provocantes, a partir do século XV. Na língua inglesa o termo preferido é transvestite que foi cunhado a partir dos estudos do sociólogo e sexológo judeu-alemão, Dr. Magnus Hirschfeld, que publicou a obra, em 1910, (“Die Transvestiten: eine Untersuchung über den erotischen Verkleidungstrieb”) “Os Travestidos: uma Investigação do Desejo Erótico por disfarçar-se” para descrever um grupo de pessoas que de forma voluntária e frequente se vestia com roupas comumente designadas ao sexo oposto (HIRSCHFELD, 1910).

A Travestilidade e a transexualidade são condições identitárias e não orientações sexuais. As razões da Travestilidade e da trangeneralidade ainda não estão bem claras e isso tem sido causa de muita especulação científica, mas nenhuma teoria psicológica/psiquiátrica foi considerada consistente, apesar disso evidências demonstram que esta é uma condição neurológica (não sendo deste modo um transtorno mental). Estudos existentes demonstram que a parte do cérebro chamada bed nucleus of the stria terminalis (BSTc), que é diferente nos homens e nas mulheres e é essencial para o comportamento sexual, nos transgêneros é condizente com o cérebro do gênero ao qual eles se identificam (ZHOU, 1995 e KRUIJVER, 2000), observado, isso independentemente da orientação sexual. Ramettid et all (2011) em recente pesquisa revelou que os transexuais “female to male” (FTM) têm a estrutura da massa encefálica branca semelhante à dos homens Cisgêneros, independente de ter iniciado ou não qualquer tratamento hormonal.

Essas pesquisas evidenciam que uma pessoa transexual não tem como deixar sua condição através de tratamentos psicológicos ou de qualquer outra natureza, o que existe é a possibilidade de os transexuais através de tratamentos hormonais e intervenções cirúrgicas passarem a sentir-se melhor e a viver melhor de acordo com o seu gênero.

A grande maioria das Travestis, em geral, não negam e até aceitam sua genitália como algo que as torna "mulheres" diferentes e parte do fetiche social/sexual, não se sentem constrangidas em falar, tocar, ver ou serem tocadas em sua genitália e faz parte do modo como obtém seu prazer sexual.




7 Visibilidade e cidadania

 De todas as variantes da sexualidade humana, a transexualidade é uma das mais incompreendidas. Esta se caracteriza pela experiência de nascer com cromossomos e/ou genitais de um sexo, mas se identificar como pertencente ao gênero oposto. Assim, existem diferentes conceitos de transexualidade, porém, todos eles “têm como denominador comum a não compatibilização do sexo biogenético com a identificação psicológica sexual no mesmo indivíduo”. (SUTTER, 1993).

A pessoa transexual está submetida – talvez de modo mais severo do que qualquer outra – a diferentes tensões e conflitos nas relações sociais, em virtude da sua identidade de gênero. Alguns são relativos ao próprio indivíduo1 transexual, i.e., se referem a tensões intra-individuais (consigo mesmo); outros, são inter-individuais (um indivíduo com outros); e, finalmente, ocorrem conflitos no tocante a indivíduos e populações com instituições supra-individuais – ou mesmo, “supra-coletivas”, como são o direito ou a moral.

Ambas instituições têm como uma de suas expressões os direitos humanos fundamentais, considerados “instrumentos de libertação individual e social”, capazes de “dar uma contribuição essencial para definir a condição humana e, ao mesmo tempo, as modalidades de funcionamento dos sistemas jurídicos” (RODOTÀ, 2005).

Através do Processo de Transexualização, o aspecto físico do problema pode ser minorado, quando não resolvido, apesar disso o tratamento desencadeia uma série de questões nos campos jurídico e existencial. Em suma, a problemática enfrentada por pessoas transexuais, iniciados muitas vezes na infância, se agudizam na adolescência, e se agravam a partir do momento em que começa a se tratar, seja por automedicação, seja através do Processo de Transexualização (Barboza, 2010).

Ante a impossibilidade de abordar aqui toda essa gama de aspectos, analisaremos os conflitos intra-individuais e os conflitos com a moral e o direito, legítimos objetos da bioética e do biodireito.

Os conflitos intra-individuais são aqueles resultantes da tensão entre identidade sexual e identidade de gênero.

A pertinência de se aplicar a bioética pode parecer óbvia se pensarmos apenas na prática da intervenção médico-cirúrgica sobre o corpo do sujeito transexual que genuinamente a deseja. Assim, de acordo com o princípio bioético de autonomia aplicável a qualquer indivíduo cognitiva e moralmente competente, que deseje restabelecer uma coerência entre seus “eus” em conflito, este tipo de intervenção é prima facie moralmente legítimo. Também, outro poderoso argumento se encontra nos princípios, ao mesmo tempo bioéticos e sanitários, de “qualidade de vida” e de “bem-estar”. Nas sociedades liberais, complexas e pluralistas contemporâneas, esse princípios permitem legitimar moralmente as intervenções sobre os corpos dos indivíduos, nas modalidades por eles mesmos requeridas (ou pelo menos consentidas), desde que isso não prejudique, de maneira substantiva, terceiros.

Apenas a adequação fisionômica ao gênero não é o suficiente, pois vivendo em sociedade o reconhecimento do outro é condição sine qua non para a plenitude da dignidade humana e para isso compete ao ordenamento jurídico dispor de mecanismos que afaste a segregação social e garanta às pessoas transexuais a passibilidade de lutar por este objetivo na sociedade a que busca regulamentar.

O sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde logo com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e única (FACHIN, 1996). Essa qualificação inicial – o nome civil - que só por exceção e por força de ordem judicial será alterada, será determinante a todos os demais dados que permitem a identificação do indivíduo no meio social, seus direitos e deveres. A sociedade tem grande interesse na correta identificação das pessoas, que se inicia pelo nome, e muito contribui para a estabilidade das relações patrimoniais e existenciais. Contudo, o reconhecimento da sexualidade não decorre exclusivamente de características físicas exteriores. A problemática da identidade sexual é muito mais ampla do que o sexo morfológico (SZANIAWSKI, 1999). A aparência externa não é a única circunstância para a atribuição do gênero, pois, com o lado externo concorre o elemento psicológico (CHAVES, 1980) A mera utilização desse critério de verificação fisiológica despreza as características secundárias e eventuais ambiguidades sexuais. O sexo civil ou jurídico deve espelhar e coincidir com o sexo vivido socialmente pela pessoa e, por isso não admite ambiguidades (SZANIAWSKI, 1999).

O imbróglio jurídico sobre as identidades “legal” e “social” das pessoas travestis, transexuais e transgêneros pede provocar situações que demostram o tamanho da lacuna que ainda existe na legislação brasileira. Graças a ele, há pessoas que vivem sua vida real com um nome — o nome delas, pelo qual são conhecidas e se sentem chamadas, aquele que usam na interação social cotidiana —, mas que carregam consigo um instrumento de identificação legal, uma carteira de identidade, que consta outro nome. E esse nome aparece também na carteira de motorista, na conta de luz, no diploma da escola ou da universidade, na lista de eleitores, no contrato de aluguel, no cartão de crédito, no prontuário médico. Um nome que evidentemente é de outro, daquele “ser imaginário” que habita nos papeis, mas que ninguém conhece no mundo real.

Deste modo encontramos pessoas que não existem nos registros públicos e em alguns documentos e há outras pessoas que só existem nos registros públicos e em alguns documentos podendo levar a uma problemática quando ambas são postas de frente no dia-a-dia.

Falamos de pessoas que se sentem, vivem, se comportam e são percebidas pelos outros como homens ou como mulheres, mas cuja identidade de gênero é negada pelo Estado, que reserva para si a exclusiva autoridade de determinar os limites exatos entre a masculinidade e a feminilidade e os critérios para decidir quem fica de um lado e quem do outro, como se isso fosse possível.

Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2013), em toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento, “costumam nascer monstros”. No artigo intitulado No Brasil todo o mundo é índio, exceto quem não é, ele traz à tona o debate sobre o reconhecimento oficial da/s identidade/s e sobre a pretensão da Ciência — com maiúscula — e do Estado de estabelecer critérios pretensamente “objetivos” para legitimá-las, para distinguir a identidade autêntica da inautêntica, para dizer quem é o quê; e quem não pode ser; sobretudo, quem não pode.

 "É sem dúvida difícil ignorar a questão, uma vez que o Estado e seu arcabouço jurídico-legal funcionam como moinhos produtores de substâncias, categorias, papéis, funções, sujeitos, titulares desse ou daquele direito etc. O que não é carimbado pelos oficiais competentes não existe – não existe porque foi produzido fora das normas e padrões – não recebe selo de qualidade. O que não está nos autos etc. Lei é lei etc. (CASTRO, 2013)."

 Travestis, transexuais e transgêneros são, hoje, no Brasil, homens e mulheres sem selo de qualidade, sem o carimbo dos oficiais competentes. Pessoas clandestinas. Mas ser homem ou ser mulher é um atributo “determinável por inspeção”? Quem determina quem tem direito a ser João ou Maria? O que é um nome? As perguntas parecem mal formuladas. Não há como o Estado determinar por lei a autenticidade masculina dos homens ou a autêntica feminidade das mulheres.

A Lei de Registros Públicos (Brasil, 1973), em seu artigo 57, parágrafo 1º, e art. 58, autoriza que o “verdadeiro” nome, ou seja, aquele que traduz a identidade da pessoa e pelo qual é conhecida no meio social substitua o nome civil, que se encontra esquecido em um arquivo cartorário. É o caso, muitas vezes, de artistas e atletas. Contudo, tal possibilidade é negada em muitos casos às pessoas transexuais, por não se considerar “razoável” a contradição flagrante entre o nome e o gênero, que denota erro ou mesmo falsidade. Se difícil é obter a autorização judicial para a alteração do nome, mais difícil é a modificação do gênero dos transexuais no Registro Civil, principalmente dos que não desejam ou não se submeteram a operações de readequação genital.

Contudo o Estado vem assumindo, aos poucos e a contragosto, essa realidade, portarias, decretos e decisões administrativas de ministérios, governos estaduais, prefeituras, universidades e outros órgãos e instituições vêm reconhecendo a inexistência na previsão legal ou na sua execução e vêm colocando em prática soluções provisórias sob o rótulo de “nome social”, definido pelo Ministério da Educação e Cultura, como “aquele pelo qual essas pessoas se identificam e são identificadas pela sociedade”, desse modo, o Estado reconhece que o nome pelo qual “essas pessoas” se identificam e são identificadas pela sociedade não é aquele que está escrito no Registro Geral, no Certificado de Pessoa Física ou no diploma escolar. Que a identidade oficialmente registrada é diferente daquela que a própria sociedade reconhece e os interessados reclamam para si.

No âmbito federal, o Ministério da Educação, o SUS, a Administração Pública Federal direta e diversas instituições federais de ensino, entre outras entidades, já ditaram normas que garantem às pessoas travestis e transexuais o uso do “nome social”. Como exemplo, a Administração Pública Federal direta, de acordo com a portaria nº 233/10 do Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão (BRASIL, 2010), assegura aos servidores públicos transexuais o uso do “nome social” nos crachás (mas apenas no anverso deles), nas comunicações internas, na identificação funcional, no endereço de correio eletrônico, no nome de usuário em sistemas de informática, no tratamento dado à pessoa pelos agentes públicos entre outros. Decisões semelhantes já foram tomadas por dezenas de órgãos e governos estaduais e municipais.

 8 Considerações finais

 A identidade de gênero e o “nome social” das pessoas travestis, transexuais e transgêneros estão sendo reconhecidas, portanto, parcialmente e através de mecanismos de exceção, cabe aqui a dúvida do por que desta exceção. A dupla identidade está sendo oficializada e o Estado começa a reconhecer que existe uma discordância entre a vida real e os documentos. Esse estado de semi-legalidade das identidades trans cresce a partir de decisões diversas carregadas de boa vontade, espalhadas pelo amplo território do público. São avanços importantes que devem ser reconhecidos, porque facilitarão a vida de milhares de seres humanos esquecidos pela lei, mas, ao mesmo tempo, evidenciam um caos jurídico que deve ser resolvido e para que isso ocorra é necessário chegar-se ao âmago do problema identificando o que leva a justiça não acatar seus próprios princípios.

Como definido por Saret (2007), dignidade humana é:


"a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos."

 Cabe ao direito na sua busca por justiça, não se acovardar nem se dobrar a ultrapassados dogmas, fazendo de forma eficiente valer o princípio da dignidade humana pregada por nossa Constituição.


Referências

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BRASIL. portaria nº 233/10. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. [S.l.]. 2010.


BRASIL. portaria nº 233/10. Ministério do Planejamento. [S.l.]. 2010.


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[1] Bacharelando no Curso de Direito da Faculdade Avantis em Balneário Camboriú/SC. Endereço eletrônico: lasherssa@hotmail.com.

[2] Mestra em Desenvolvimento Regional; Bacharela em Direito; Professora no Curso de Comércio Exterior na Universidade do Vale do Itajaí-UNIVALI e Professora no Curso de Direito da Faculdade Avantis em Balneário Camboriú/SC. Endereço eletrônico: marianabarbosa@avantis.edu.br.