A
evolução e a complexização das relações sociais trouxe a necessidade da
discussão de temas que antes eram considerados secundários, tabus ou mesmo
dispensáveis para o Direito. A transexualidade é um destes temas que envolvem
as mais diversas áreas do conhecimento, sendo imperiosa uma análise jurídica
aliada a outros ramos da ciência para a efetivação dos direitos fundamentais
destas pessoas que, na maioria das vezes, são taxadas de ‘anormais’, sendo
forçadas à margem da sociedade. Trata-se, também, do aspecto ético e penal, bem
como o dever do Estado em garantir a saúde da pessoa transexual. Por outro
lado, o sistema jurídico não é só composto de normas jurídicas, mas envolvem
costumes, ideologias e a maneira pessoal de reação ao tema presente nos seus
operadores, ou seja, aqueles que dão vida à norma interpretam-na, aplicam-na.
Eis aí o enlace necessário que o aspecto jurídico precisa ter com a bioética.
Somente
a partir do enfoque bioético livre de dogmas é que a transexualidade poderá
progredir, livrando-se de enfoques já ultrapassados, a fim de revalorar o que
informam as regras sociais, tais como os princípios bioéticos de beneficência,
autonomia e justiça, que resguardam a dignidade humana e propõem a diminuição
do sofrimento humano, num âmbito de tolerância. A falta de uma perspectiva
bioética tem feito das pessoas transexuais vítimas da intolerância e ignorância
humana. O percurso dos interessados não é fácil e encontra óbices de diversas
ordens, possuindo, por vezes, no Poder Judiciário, a consolidação do
sofrimento.
1 Sexo, identidade de
gênero, sexualidade e transexualidade
Primeiramente,
necessário proceder a diferenciação de sexos (genético, genital, gonadal)
dentro do modelo biológico, além da sexualidade e identidade de gênero dentro
dos diversos modelos bioéticos.
"Quando o homem
atribuía um sexo a todas as coisas, não via nisso um jogo, mas acreditava
ampliar seu entendimento: - só muito mais tarde descobriu, e nem mesmo
inteiramente, ainda hoje, a enormidade desse erro. De igual modo o homem
atribuiu a tudo o que existe uma relação moral, jogando sobre os ombros do
mundo o manto de uma significação ética. Um dia, tudo isso não terá nem mais,
nem menos valor do que possui hoje a crença no sexo masculino ou feminino do
Sol." (NIETZSCHE, 2008, p. 27)
A
confusão entre homossexualidade e transgeneridade é algo generalizado, tomam
sempre que um menino com comportamento mais feminino, com certeza está
treinando ou corre o risco de ser "viado", "bichinha",
"baitola", "bambi" (todos os termos usados para depreciar
os homens gays), de igual modo as meninas com comportamento mais masculino
correm o risco de ser “caminhoneira”, “sapatão”, “machorra” (todos os termos
usados para depreciar as mulheres gays).
Essa
confusão nega que existamos antes de nossas sexualidades, que tenhamos uma
identidade independente dessa sexualidade, que nos identificamos com um gênero
e que isso independe do campo do afeto e desejo.
Outra
confusão muito comum é a que trata da identidade de gênero e as diversas
classificações sexuais.
2 Sexos biológicos e intersexualidade
O
significado da palavra sexo, de acordo com o Novo dicionário Aurélio da língua
portuguesa (1986, p. 1.580), originária
do latim sexu, consiste na
“conformação particular que distingue o macho da fêmea, nos animais e nos
vegetais, atribuindo-lhes um papel determinado na geração e conferindo-lhes
certas características distintivas”. Diz respeito, portanto, aos aspectos
biológicos apenas. Podemos entender, então, que sexo é diferente de sexualidade
e identidade de gênero.
O
sexo de uma pessoa era identificado inicialmente apenas por estruturas externas
(sexo genital), a presença de pênis ou vagina determinava a que sexo pertencia
o indivíduo, caracterizando também o gênero
(GUERRA-JÚNIOR, 2009). A existência de indivíduos intersexuados antagonizava
esse binarismo, com a descoberta da genética e dos cromossomos sexuais, uma nova
definição se inicia, o binarismo ganha novo contorno, a presença de determinado
par de cromossomos sexuais XX ou XY determinaria o sexo (sexo genético), entretanto
a ocorrência de monossomia (Síndrome Turner) e de trissomias (síndrome do
triplo X, síndrome de Klinefelter), antagonizam novamente este binarismo, mesmo
com o uso de ambas as características não se tinha uma classificação unitária (QUAGLIA, 2009), a embriologia e a fisiologia
molecular trazem nova luz ao dilema, marcadores hormonais além da presença das
gônadas (ovários e testículos) passa a fazer parte na determinação sexual (sexo
gonadal), mas novamente a presença de variantes intersexuais questiona o
binarismo sexual de masculino e feminino
(CERQUEIRA e VERRESCHI, 2011).
Acerca
da intersexualidade segue quadro explicativo:
Quadro 1 -
Intersexualidade
Feminino
com virilização
|
|
Gônadas
|
Ovários
|
Genitália
externa
|
Com
espectro variável de masculinização
|
Genitália
interna
|
Feminina
(com útero)
|
Masculino
com subvirilização
|
|
Gônadas
|
Testículos
|
Genitália
externa
|
Variável
|
Genitália
interna
|
Masculina
(sem útero)
|
Intresexuado
verdadeiro
|
|
Gônadas
|
Ambas
– Testículo e ovário a cada lado ou ovotestis
|
Genitália
externa
|
Variável
– ambígua
|
Genitália
interna
|
Variável
– com assimetria dos genitais internos e com útero
|
Digenesia
gonadal mista (contém elementos masculinos e femininos)
|
|
Gônadas
|
Indiferenciadas
(em fita)
|
Genitália
externa
|
Variável
(virilização discreta)
|
Genitália
interna
|
Variável
(com útero)
|
Digenesia
gonadal pura 46, XX (contém somente elementos femininos)
|
|
Gônadas
|
Indiferenciado
(em fita)
|
Genitália
externa
|
Feminina
|
Genitália
interna
|
Somente
estrutura feminina (com útero)
|
Digenesia
gonadal pura 46, XY (“sexo reverso” contém elementos femininos e resquícios
masculinos)
|
|
Gônadas
|
Indiferenciada
ou disgenética com aspecto testicular(em fita ou não)
|
Genitália
externa
|
Feminina
|
Genitália
interna
|
Estruturas
embrionárias (com útero ou restos mullerianos rudimentares)
|
Fonte:
adaptado de (CERQUEIRA e VERRESCHI, 2011)
A
intersexualidade pode ser caracterizada de duas formas a genital interna ou
externa e gonadal, as principais formas são: feminino com virilização,
masculino com subvirilização, intersexualidade e digenesia gonadal.
3 Gênero, identidade de gênero e papel de gênero
Ser
masculino ou feminino, homem ou mulher, é uma questão de gênero. Deste modo, o
conceito primaz para identificarmos homens e mulheres é o de gênero.
Ora, o indivíduo
não pode ser pensado sozinho: ele só existe em relação. Basta que haja relação
entre dois indivíduos para que o social já exista e que não seja nunca o
simples agregado dos direitos de cada um de seus membros, mas um arbitrário
constituído de regras em que a filiação (social) não seja nunca redutível ao
puro biológico (HÉRITIER,
1996, p. 288).
Enquanto
sexo é um conceito principalmente biológico, gênero é um conceito essencialmente
social, sendo sua construção e representação apresentada das mais diferentes
formas, pelas diferentes culturas. Gênero vai além dos sexos: Sua definição não
se restringe apenas aos cromossomos, a conformação genital ou a presença ou não
de determinadas gônadas, mas principalmente através da auto-percepção e da
forma como a pessoa se expressa socialmente. O que importa na composição e
definição do que é ser homem ou mulher, é o construto psicossocial produzido pela
autodeterminação em conjunto com a normativa imposta socialmente pelo papel de
gênero.
Ele não remete
apenas a ideias, mas também a instituições, a estruturas, a práticas cotidianas
e a rituais, ou seja, a tudo aquilo que constitui as relações sociais. O
discurso é um instrumento de organização do mundo, mesmo se ele não é anterior
à organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica
primária, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é
a causa originária a partir da qual a organização social poderia ter derivado;
ela é mais uma estrutura social movediça que deve ser ela mesma analisada em
seus diferentes contextos históricos (SCOTT,
1998, p. 15)
Identidade
de gênero é caracterizada pela forma como o indivíduo se identifica dentre os
papéis de gêneros normatizados socialmente, i.e., a coadunação pessoal dentre
as posturas socialmente definidas para cada gênero.
Papel
de gênero pode ser definido como o conjunto de performances que expressam e são
aceitos dentro de determinada sociedade como pertencentes a este ou aquele
gênero, as características constituintes destes papéis são tão várias quanto o
número de culturas existentes, a exemplo disso podemos citar desde vestuário (o
kilt na Escócia é uma vestimenta masculina, no Brasil, seria considerado
feminino), posturas propriamente ditas (mulheres de países nórdicos têm
características que, para nossa cultura, são tidas como masculinas) ou
adereços.
4 Sexualidade
O
senso comum, fundamentado fortemente em crenças e valores pessoais, induz a
argumentos como o que confunde opção sexual com orientação sexual. Quando é
referida opção a uma pessoa isto significa que esta opta por algo, ela faz uma
escolha voluntária entre várias ou, no mínimo, entre duas possibilidades. As
pessoas com orientação homossexual não optam por se apaixonar e se relacionar
intimamente com pessoas do mesmo gênero, isto porque o desejo afetivo-sexual
não é passível de escolha, sendo assim na homossexualidade o desejo é voltado a
pessoas do mesmo gênero, de igual modo ocorre na heterossexualidade, em que o
desejo afetivo-sexual é voltado a pessoas do gênero oposto e na bissexualidade
ele ocorre para ambos (PARANÁ, 2009).
Observamos
que os sujeitos podem exercer sua sexualidade de diferentes formas, eles podem viver
seus desejos e prazeres corporais de muitos modos. Suas identidades sexuais se constituiriam,
pois, através das formas como vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo gênero
(homossexuais), de gênero oposto (heterossexuais), de ambos os gêneros (bissexuais)
ou sem parceiros/as (assexuados).
Deste
modo temos que a orientação sexual depende diretamente do gênero ao qual a
pessoa pertence/se identifica e o gênero da pessoa desejada e como o gênero não
está diretamente ligado aos sexos biológicos pessoas transgêneros podem
apresentar toda gama de sexualidades possíveis
Ao
dirigir o foco para o caráter "fundamentalmente social", não há,
contudo, a pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos
sexuados, deste modo, a biologia não é negada, mas enfatizada, deliberadamente,
a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas.
Como diz Robert Connell (1995, p. 189), "no gênero, a
prática social se dirige aos corpos". O conceito pretende se referir ao
modo como as características sexuais são compreendidas e representadas ou,
então, como são "trazidas para a prática social e tornadas parte do
processo histórico".
Pretende-se,
dessa forma, recolocar o debate no campo do social, pois é nele que se
constroem e se reproduzem as relações entre os sujeitos. O conceito passa a ser
usado, então, com um forte apelo relacional já que é no âmbito das relações
sociais que se constroem as sexualidades.
Vale
salientar que sexualidade esta relacionada ao desejo afetivo-sexual e não ao
ato sexual, deste modo a prática sexual não influencia na caracterização da
sexualidade do indivíduo dizendo respeito no máximo a fetiches.
5 Transexualidade
Serano
(2009) define a existência de duas
possibilidades em se tratando da forma de percepção do nosso próprio gênero.
Quando o gênero ao qual nos identificamos é o mesmo atribuído após o nosso
nascimento através da observação dos nossos sexos biológicos somos cisgêneros
(o termo “cis” significa algo como “mesmo lado”) ou quando a representação de
gênero que nos identifica não é a atribuída após nosso nascimento, somos
chamados de transgêneros (trans significa atravessar ou ir ao lado oposto).
As
terminações “cis” e “trans” são úteis em publicações voltadas para questões de
gênero, pois serve como uma estratégia para romper com a noção de que
indivíduos trans são “diferentes”, colocando em pé de igualdade ambas as “categorias”.
Em
resumo, os transgêneros são pessoas que biologicamente pertencem a um sexo
definido, mas psicologicamente pertencem e identificam-se a outro se comportando
segundo este. O transgênero acredita peremptoriamente pertencer a um gênero não
coadunado aos diversos sexos conhecidos (sexo genético, sexo genital, sexo
gonadal). Vive, se comporta e age como este gênero (SERANO, 2009). Para ele, o reconhecimento a seu nome social, a
sua identidade de gênero e a sua condição são no mínimo básicos para uma
dignidade plena.
Esta
inadequação entre genótipo e identidade de gênero não pode ser considerada com
uma anomalia, ela apenas não corresponde aos ditos ‘padrões de normalidade’
previamente estabelecidos pela sociedade, com isto, surge a diferença baseada
apenas em um parâmetro hegemônico ou mais forte.
6 Transexualidade e o
direito
Temos
como grande problemática deste trabalho o fenômeno social da transexualidade/travestilidade
versos a posição imatura seja da doutrina ou da jurisprudência, principalmente
no tocante ao tratamento penal e civil a transexuais e travestis, trazendo a baila
deste modo uma discussão de singular importância relativa ao direito à isonomia
e a digno tratamento, uma das matrizes fundamentais do constitucionalismo
moderno, evidenciando o quanto esse parâmetro pode ser cruel e o quanto é
preciso ir-se além da própria ideia de diferença, observando a multiplicidade
de singularidades, de expressões e de formas de ser do sujeito.
Dentro
das diferenças entre as diversas transexualidades e a travestilidade pode ser
caracterizada pela forma de encarar a adequação genital a identidade de gênero.
Travestis
são pessoas que nascem identificadas com um sexo masculino, mas que se vestem,
vivem e assumem cotidianamente comportamentos femininos e buscam modificar seus
corpos sejam com injeções de hormônio, aplicações de silicone e outras
cirurgias plásticas, mas não sentem desconforto algum com seu sexo de
nascimento, por outro lado transgêneros nascem identificadas com um sexo e
assumem comportamento de outro gênero, na grande maioria das vezes sentindo
desconforto ou mesmo aversão à sua genitália ou a outras características (seios
no caso de transhomens) (BEEMYN e ELIASON, 1996).
Travestis
aderem ao gênero feminino e assumem o mesmo papel social, podendo algumas serem
ambíguas, tendo, por vezes, sua identidade social/sexual masculina e feminina
coligadas interagindo muito bem com essa dualidade, independente da orientação sexual,
travestis e transexuais, podem ser heterossexuais, bissexuais ou homossexuais,
ou seja, relacionar-se sexual, amorosa e afetivamente com homens ou mulheres sejam
eles “cis” ou “trans”, sem qualquer encargo de consciência ou transtorno
psicológico (BEEMYN e ELIASON, 1996).
Travesti
hoje em dia no Brasil se refere principalmente à pessoa que apresenta sua
identidade social oposta ao sexo designado no registro civil de nascimento, mas
que não almeja, de forma alguma, se submeter à uma cirurgia de transgenitalização
ou readequação de sexo - CRS.
O
termo travesti (do latim “trans”, cruzar ou sobrepassar, e “vestere’’, vestir)
tem origem na língua francesa no vernáculo travestie
e referia-se à forma de se vestir em casas de espetáculos na França, onde
mulheres se apresentavam com roupas pequenas, sensuais e provocantes, a partir
do século XV. Na língua inglesa o termo preferido é transvestite que foi
cunhado a partir dos estudos do sociólogo e sexológo judeu-alemão, Dr. Magnus
Hirschfeld, que publicou a obra, em 1910, (“Die Transvestiten: eine
Untersuchung über den erotischen Verkleidungstrieb”) “Os Travestidos: uma
Investigação do Desejo Erótico por disfarçar-se” para descrever um grupo de
pessoas que de forma voluntária e frequente se vestia com roupas comumente
designadas ao sexo oposto (HIRSCHFELD, 1910).
A
Travestilidade e a transexualidade são condições identitárias e não orientações
sexuais. As razões da Travestilidade e da trangeneralidade ainda não estão bem
claras e isso tem sido causa de muita especulação científica, mas nenhuma
teoria psicológica/psiquiátrica foi considerada consistente, apesar disso evidências
demonstram que esta é uma condição neurológica (não sendo deste modo um
transtorno mental). Estudos existentes demonstram que a parte do cérebro
chamada bed nucleus of the stria
terminalis (BSTc), que é diferente nos homens e nas mulheres e é essencial
para o comportamento sexual, nos transgêneros é condizente com o cérebro do
gênero ao qual eles se identificam (ZHOU, 1995 e KRUIJVER,
2000), observado,
isso independentemente da orientação sexual. Ramettid et all (2011) em recente pesquisa revelou que os transexuais “female to
male” (FTM) têm a estrutura da massa encefálica branca semelhante à dos homens Cisgêneros, independente de ter iniciado ou não qualquer
tratamento hormonal.
Essas
pesquisas evidenciam que uma pessoa transexual não tem como deixar sua condição
através de tratamentos psicológicos ou de qualquer outra natureza, o que existe
é a possibilidade de os transexuais através de tratamentos hormonais e
intervenções cirúrgicas passarem a sentir-se melhor e a viver melhor de acordo
com o seu gênero.
A
grande maioria das Travestis, em geral, não negam e até aceitam sua genitália
como algo que as torna "mulheres" diferentes e parte do fetiche
social/sexual, não se sentem constrangidas em falar, tocar, ver ou serem
tocadas em sua genitália e faz parte do modo como obtém seu prazer sexual.
7 Visibilidade e cidadania
De
todas as variantes da sexualidade humana, a transexualidade é uma das mais
incompreendidas. Esta se caracteriza pela experiência de nascer com cromossomos
e/ou genitais de um sexo, mas se identificar como pertencente ao gênero oposto.
Assim, existem diferentes conceitos de transexualidade, porém, todos eles “têm
como denominador comum a não compatibilização do sexo biogenético com a
identificação psicológica sexual no mesmo indivíduo”. (SUTTER, 1993).
A
pessoa transexual está submetida – talvez de modo mais severo do que qualquer
outra – a diferentes tensões e conflitos nas relações sociais, em virtude da
sua identidade de gênero. Alguns são relativos ao próprio indivíduo1
transexual, i.e., se referem a
tensões intra-individuais (consigo mesmo); outros, são inter-individuais (um
indivíduo com outros); e, finalmente, ocorrem conflitos no tocante a indivíduos
e populações com instituições supra-individuais – ou mesmo, “supra-coletivas”,
como são o direito ou a moral.
Ambas
instituições têm como uma de suas expressões os direitos humanos fundamentais,
considerados “instrumentos de libertação individual e social”, capazes de “dar
uma contribuição essencial para definir a condição humana e, ao mesmo tempo, as
modalidades de funcionamento dos sistemas jurídicos” (RODOTÀ, 2005).
Através
do Processo de Transexualização, o aspecto físico do problema pode ser
minorado, quando não resolvido, apesar disso o tratamento desencadeia uma série
de questões nos campos jurídico e existencial. Em suma, a problemática
enfrentada por pessoas transexuais, iniciados muitas vezes na infância, se
agudizam na adolescência, e se agravam a partir do momento em que começa a se
tratar, seja por automedicação, seja através do Processo de Transexualização
(Barboza, 2010).
Ante
a impossibilidade de abordar aqui toda essa gama de aspectos, analisaremos os
conflitos intra-individuais e os conflitos com a moral e o direito, legítimos
objetos da bioética e do biodireito.
Os
conflitos intra-individuais são aqueles resultantes da tensão entre identidade
sexual e identidade de gênero.
A
pertinência de se aplicar a bioética pode parecer óbvia se pensarmos apenas na
prática da intervenção médico-cirúrgica sobre o corpo do sujeito transexual que
genuinamente a deseja. Assim, de acordo com o princípio bioético de autonomia
aplicável a qualquer indivíduo cognitiva e moralmente competente, que deseje
restabelecer uma coerência entre seus “eus” em conflito, este tipo de
intervenção é prima facie moralmente
legítimo. Também, outro poderoso argumento se encontra nos princípios, ao mesmo
tempo bioéticos e sanitários, de “qualidade de vida” e de “bem-estar”. Nas
sociedades liberais, complexas e pluralistas contemporâneas, esse princípios
permitem legitimar moralmente as intervenções sobre os corpos dos indivíduos,
nas modalidades por eles mesmos requeridas (ou pelo menos consentidas), desde
que isso não prejudique, de maneira substantiva, terceiros.
Apenas
a adequação fisionômica ao gênero não é o suficiente, pois vivendo em sociedade
o reconhecimento do outro é condição sine
qua non para a plenitude da dignidade humana e para isso compete ao
ordenamento jurídico dispor de mecanismos que afaste a segregação social e
garanta às pessoas transexuais a passibilidade de lutar por este objetivo na
sociedade a que busca regulamentar.
O
sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde logo
com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e única (FACHIN, 1996). Essa qualificação inicial – o
nome civil - que só por exceção e por força de ordem judicial será alterada,
será determinante a todos os demais dados que permitem a identificação do
indivíduo no meio social, seus direitos e deveres. A sociedade tem grande
interesse na correta identificação das pessoas, que se inicia pelo nome, e
muito contribui para a estabilidade das relações patrimoniais e existenciais. Contudo,
o reconhecimento da sexualidade não decorre exclusivamente de características
físicas exteriores. A problemática da identidade sexual é muito mais ampla do
que o sexo morfológico (SZANIAWSKI, 1999).
A aparência externa não é a única circunstância para a atribuição do gênero,
pois, com o lado externo concorre o elemento psicológico (CHAVES, 1980) A mera utilização desse critério
de verificação fisiológica despreza as características secundárias e eventuais
ambiguidades sexuais. O sexo civil ou jurídico deve espelhar e coincidir com o
sexo vivido socialmente pela pessoa e, por isso não admite ambiguidades (SZANIAWSKI, 1999).
O
imbróglio jurídico sobre as identidades “legal” e “social” das pessoas
travestis, transexuais e transgêneros pede provocar situações que demostram o
tamanho da lacuna que ainda existe na legislação brasileira. Graças a ele, há
pessoas que vivem sua vida real com um nome — o nome delas, pelo qual são
conhecidas e se sentem chamadas, aquele que usam na interação social cotidiana
—, mas que carregam consigo um instrumento de identificação legal, uma carteira
de identidade, que consta outro nome. E esse nome aparece também na carteira de
motorista, na conta de luz, no diploma da escola ou da universidade, na lista
de eleitores, no contrato de aluguel, no cartão de crédito, no prontuário
médico. Um nome que evidentemente é de outro, daquele “ser imaginário” que
habita nos papeis, mas que ninguém conhece no mundo real.
Deste
modo encontramos pessoas que não existem nos registros públicos e em alguns
documentos e há outras pessoas que só existem nos registros públicos e em
alguns documentos podendo levar a uma problemática quando ambas são postas de
frente no dia-a-dia.
Falamos
de pessoas que se sentem, vivem, se comportam e são percebidas pelos outros
como homens ou como mulheres, mas cuja identidade de gênero é negada pelo
Estado, que reserva para si a exclusiva autoridade de determinar os limites
exatos entre a masculinidade e a feminilidade e os critérios para decidir quem
fica de um lado e quem do outro, como se isso fosse possível.
Como
diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro
(2013), em toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em
processo público de acasalamento, “costumam nascer monstros”. No artigo
intitulado No Brasil todo o mundo é
índio, exceto quem não é, ele traz à tona o debate sobre o reconhecimento
oficial da/s identidade/s e sobre a pretensão da Ciência — com maiúscula — e do
Estado de estabelecer critérios pretensamente “objetivos” para legitimá-las,
para distinguir a identidade autêntica da inautêntica, para dizer quem é o quê;
e quem não pode ser; sobretudo, quem não pode.
"É sem dúvida
difícil ignorar a questão, uma vez que o Estado e seu arcabouço jurídico-legal
funcionam como moinhos produtores de substâncias, categorias, papéis, funções,
sujeitos, titulares desse ou daquele direito etc. O que não é carimbado pelos
oficiais competentes não existe – não existe porque foi produzido fora das
normas e padrões – não recebe selo de qualidade. O que não está nos autos etc.
Lei é lei etc. (CASTRO, 2013)."
Travestis,
transexuais e transgêneros são, hoje, no Brasil, homens e mulheres sem selo de
qualidade, sem o carimbo dos oficiais competentes. Pessoas clandestinas. Mas
ser homem ou ser mulher é um atributo “determinável por inspeção”? Quem
determina quem tem direito a ser João ou Maria? O que é um nome? As perguntas
parecem mal formuladas. Não há como o Estado determinar por lei a autenticidade
masculina dos homens ou a autêntica feminidade das mulheres.
A
Lei de Registros Públicos (Brasil, 1973), em seu artigo 57, parágrafo 1º, e
art. 58, autoriza que o “verdadeiro” nome, ou seja, aquele que traduz a
identidade da pessoa e pelo qual é conhecida no meio social substitua o nome
civil, que se encontra esquecido em um arquivo cartorário. É o caso, muitas
vezes, de artistas e atletas. Contudo, tal possibilidade é negada em muitos
casos às pessoas transexuais, por não se considerar “razoável” a contradição
flagrante entre o nome e o gênero, que denota erro ou mesmo falsidade. Se
difícil é obter a autorização judicial para a alteração do nome, mais difícil é
a modificação do gênero dos transexuais no Registro Civil, principalmente dos
que não desejam ou não se submeteram a operações de readequação genital.
Contudo
o Estado vem assumindo, aos poucos e a contragosto, essa realidade, portarias,
decretos e decisões administrativas de ministérios, governos estaduais,
prefeituras, universidades e outros órgãos e instituições vêm reconhecendo a
inexistência na previsão legal ou na sua execução e vêm colocando em prática
soluções provisórias sob o rótulo de “nome social”, definido pelo Ministério da
Educação e Cultura, como “aquele pelo qual essas pessoas se identificam e são
identificadas pela sociedade”, desse modo, o Estado reconhece que o nome pelo
qual “essas pessoas” se identificam e são identificadas pela sociedade não é
aquele que está escrito no Registro Geral, no Certificado de Pessoa Física ou
no diploma escolar. Que a identidade oficialmente registrada é diferente
daquela que a própria sociedade reconhece e os interessados reclamam para si.
No
âmbito federal, o Ministério da Educação, o SUS, a Administração Pública
Federal direta e diversas instituições federais de ensino, entre outras
entidades, já ditaram normas que garantem às pessoas travestis e transexuais o
uso do “nome social”. Como exemplo, a Administração Pública Federal direta, de
acordo com a portaria nº 233/10 do Ministério de Planejamento, Orçamento e
Gestão (BRASIL, 2010), assegura aos
servidores públicos transexuais o uso do “nome social” nos crachás (mas apenas
no anverso deles), nas comunicações internas, na identificação funcional, no
endereço de correio eletrônico, no nome de usuário em sistemas de informática,
no tratamento dado à pessoa pelos agentes públicos entre outros. Decisões
semelhantes já foram tomadas por dezenas de órgãos e governos estaduais e
municipais.
8 Considerações finais
A
identidade de gênero e o “nome social” das pessoas travestis, transexuais e
transgêneros estão sendo reconhecidas, portanto, parcialmente e através de
mecanismos de exceção, cabe aqui a dúvida do por que desta exceção. A dupla
identidade está sendo oficializada e o Estado começa a reconhecer que existe
uma discordância entre a vida real e os documentos. Esse estado de
semi-legalidade das identidades trans cresce a partir de decisões diversas
carregadas de boa vontade, espalhadas pelo amplo território do público. São
avanços importantes que devem ser reconhecidos, porque facilitarão a vida de
milhares de seres humanos esquecidos pela lei, mas, ao mesmo tempo, evidenciam
um caos jurídico que deve ser resolvido e para que isso ocorra é necessário
chegar-se ao âmago do problema identificando o que leva a justiça não acatar
seus próprios princípios.
Como
definido por Saret (2007), dignidade
humana é:
"a qualidade
intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito
e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido,
um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos."
Cabe
ao direito na sua busca por justiça, não se acovardar nem se dobrar a
ultrapassados dogmas, fazendo de forma eficiente valer o princípio da dignidade
humana pregada por nossa Constituição.
Referências
BEEMYN, B.; ELIASON, M. Queer Studies: A Lesbian, Gay,
Bisexual, and Transgender Anthology. Nova York: New York University, 1996.
BRASIL. portaria
nº 233/10. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. [S.l.]. 2010.
BRASIL. portaria
nº 233/10. Ministério do Planejamento. [S.l.]. 2010.
CASTRO, E. V. D.
No Brasil, todo mundo é índio, exceto
quem não é. Set 2013. Disponivel em:
<http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf>.
Acesso em: jan. 2013.
CERQUEIRA, E. K.
Bioética personalista ontologicamente fundada e a sexualidade. In:
CERQUEIRA(ORG), E. K. Sexualidade, gênero e desafios bioétticos. São
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[1] Bacharelando no Curso de Direito da
Faculdade Avantis em Balneário Camboriú/SC. Endereço eletrônico:
lasherssa@hotmail.com.
[2] Mestra em Desenvolvimento Regional;
Bacharela em Direito; Professora no Curso de Comércio Exterior na Universidade
do Vale do Itajaí-UNIVALI e Professora no Curso de Direito da Faculdade Avantis
em Balneário Camboriú/SC. Endereço eletrônico: marianabarbosa@avantis.edu.br.
Maravilhoso e esclarecedor. Agora tenho um material de cabeceira, afinal fazem muita confusão a respeito, por isso deve ser compartilhado à exaustão, parabéns e continue escrevendo :)
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