domingo, 11 de novembro de 2012

Nada contra, mas.... (by Otavio Zini)


Conjunções adversativas, partículas linguísticas que relacionam sentenças, atribuindo-lhes por vezes alguma lógica (por mais ilógica que esta lógica seja), pensamentos contrastantes, opositivos ou restritivos, podemos citar diversos exemplos delas, algumas mais usadas outras menos, como “portanto”, “conquanto”, “porém”, “toda via” e o mais comum o “MAS”.
Fico admirado com a carga de preconceito que pode carregar uma conjunção adversativa, uma palavrinha tão pequena e tão carregada de exclusão, ela é tanto pérfida quanto hipócrita, pérfida pela carga que permite carregar e hipócrita pois faz com que as pessoas se escondam atrás dela. Que palavrinha vil, esse “mas”, ouvimos a todo momento e por vezes nem percebemos o mal que ele carrega, por outras parece que usamos de propósito como máscara que esconda nossa verdadeira face, caso ainda não tenhas percebido do que falo serei mais claro, super comum um tipo de frase com essa conjunção adversativa: "não tenho nada contra X, mas... (substitua o X pela palavra que denomine qualquer grupo: mulheres, gays, quem tem HIV, negros, deficientes, ou qualquer outro que te aprouver) e ai vem as piores asneiras, crendo, quem as proferiu se encontrar livre de acusações de seu preconceito pelo uso da conjunção adversativa.
Vale salientar que bastaria a pessoa que profere tal tipo de frase trocar o X da questão por qualquer outro grupo e ver como aparenta ser terrível o que a mesma diz, mas isto é deveras cansativo, como é cansativo pensar um pouco antes de dizer asneiras.
Na coleção de asneiras preconceituosas, sob a disfarce da conjunção adversativa “mas” posso citar algumas que guardei:

“Eu juro que não tenho nada contra, mas que essa gente não é normal, não é”.
“Eu acho totalmente errado ficar discriminando, mas não concordo com o estilo de vida dos gays.”
“Ele é gay, mas é uma ótima pessoa.”
“Eu até aceito, mas não sou obrigado a achar normal. Não sou obrigado mesmo!”
“Eu até aceito, mas não quero saber de homem se beijando na minha frente”
“Eu não tenho nada contra, mas acho um exagero todos esses privilégios que eles têm.”
“Ele é gay? Nossa, mas parece tão normal...”
“Eu não tenho nada contra, tenho até vários amigos que são, mas eles precisavam ser tão afetados?”
“Eu não tenho nenhum preconceito, mas o que vão pensar se me verem com um gay?”
“Eu não tenho nada contra, mas se eles querem ficar de mãos dadas, que façam isso sem ninguém ver, afinal não somos obrigados”

Essas são apenas algumas pérolas das asneiras preconceituosa que ouvimos dia após dia, espero que daqui para frente sempre que fores usar a conjunção adversativa “mas” ou que for dizer "não tenho nada contra X, mas..." repense muitas vezes antes e de preferência se cale!

domingo, 9 de setembro de 2012

Beijo para que? (By Otavio Zini)


“As pessoas ainda não estão preparadas para ver dois homossexuais se beijando”, ouço muitas vezes essa afirmação, como se devêssemos esperar pela aprovação das pessoas para nosso afeto, como é difícil para as pessoas tentarem se colocar no lugar das outras, um trabalho que deveria ser bem simples mas como é complicado, imaginemos o contrário que virássemos para um casal hétero e disséssemos que eles deveriam manter suas demonstrações de afeto escondidas porque as pessoas não estão acostumadas, será que achariam correto? Quando um casal de sexodiversos (aqueles que fogem a heteronormatividade imposta) anda de mãos dadas ou trocam demonstrações de afeto em público ele nada faz de diferente dos outros casais, e não, eles não estão querendo enfiar goela abaixo seu modo de ser, ao menos não mais que qualquer outro casal, se as pessoas acham estranho, mais ainda deveria ser feito para que a prática passasse a ser vista como comum, sem visibilidade não temos como acabar ou ao menos minorar o preconceito.
Um exemplo claro disso é a participação feminina na política, a tempos não muito distantes a mulher era vista como incapaz para cargos eletivos, foi necessário uma lei que obrigasse os partido a terem um número mínimo de candidatos do sexo feminino para que começassem a serem vistas e acreditadas, será que sem essa visibilidade, a maioria acreditaria na capacidade da mulher? Provavelmente ela ainda estivesse sem voz, submissa aos caprichos de uma sociedade que apenas valoriza o cidadão branco, macho e heterossexual.
Infelizmente a frase que inicia o texto não é a única e não a ouço apenas falada por heterossexuais, o preconceito mesmo entre os sexodiversos campeia, talvez por ouvirmos tanto que não somos “normais”, que devemos nos esconder, sermos invisíveis, acabamos por repetir essas atrocidades, me pergunto quando nos veremos como pessoas normais, tão dignas de direitos quanto os outros.
Ouço pessoa perguntarem: “Como vou explicar a meus filhos, netos ou sobrinhos quando eles presenciarem um casal homossexual se beijando?”, essa realmente me faz rir, para não chorar, eu apenas digo já explicastes a eles quando eles veem um casal heterossexual se beijando que o beijo é apenas uma demonstração de afeto entre duas pessoas que se gostam? E me dizem - “Mas isso eles não perguntam.” - de pronto rebato - “e porque perguntariam da outra situação? Será que não foi você que a colocou como estranha para eles? Será que não colocou como “anormal”? Será que você não os está criando para serem os preconceituosos de amanhã? Por que será que eles não te perguntam porque aquela pessoa é negra (pelo menos não perguntam mais, pois essa já foi uma pergunta comum)? Talvez porque, nesse caso, já tenhas ao menos reduzido seu preconceito e não mais o passe a seus filhos, sobrinhos e netos.
A sexualidade é algo inerente à pessoa, o desejo por essa ou aquela pessoa não é "passado" nem ensinado, por mais que alguns queiram dizer o contrário, vejamos o exemplo que tínhamos a algum tempo atrás quando os casais inter-raciais eram vistos como “anormais”, dizia-se que se as crianças vissem esses casais como coisa normal iriam querer se relacionar com pessoas “diferentes”, sei que hoje uma afirmação dessa, é vista como absurda, mas a relativo pouco tempo, era bem normal, agora pergunto, a visualização destes casais como normais alterou o desejo de alguém? Será que o desejo pode ser modificado? Acredito que a única coisa que pode ser modificado é a aceitação do desejo e não a quem ele é orientado, esta aceitação nos faz plenos já que podemos expressar e viver nossos desejos na sua plenitude sem nos enganarmos para tentar agradar ou ser aceito por quer quer que seja.
Por esses e outros motivos devemos nos mostrar muito mais, vamos beijar muito, andar sempre de mãos dadas, trocando olhares apaixonados quem sabe dessa forma conseguimos diminuir o preconceito nosso de cada dia.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Passivo ou ativo, o machismo e a misoginia nossa de cada dia.... (por Otavio Zini)




É muito comum os oprimidos fazerem bandeira por serem oprimidos e alardearem aos quatro ventos “eu não sou preconceituoso!”, mas será mesmo? Os mais diversos preconceitos encontram-se tão mimetizados e enraizados em nós que caso não façamos um bom trabalho de jardinagem, que deve ser feito a cada momento, essas ervas daninhas comprometem toda a beleza que poderia ser o nosso jardim interior.
Começo esse texto assim de forma evasiva para levantar algumas perguntas que me foram muitas vezes feitas e outras que ainda me são feitas - “Você é ativo ou passivo?” - sempre que eu ouvia essa pergunta, a primeira resposta que me vinha a cabeça era: “sou reflexivo” - mas quando dava essa resposta sempre me perguntavam - “Como assim?” - no que de pronto eu respondia: “Quando me fazem essa pergunta eu sento e reflito, o que estou fazendo aqui?” Outra pergunta que sempre me irritou era: “Você não é afeminado, é?” talvez essa me irritasse ainda mais, pois esquecemos que os papéis masculinos e femininos se permeiam em todas as pessoas e a beleza está exatamente na diversidade de expressões passíveis ao ser humano, somos homens e mulheres o tempo inteiro, que problema há nisso? Salvo sobre uma visão machista e misógina, que vê a mulher como inferior, a maravilha da humanidade passa essencialmente na versatilidades de papéis. Atualmente perguntam-nos - “Quem é o homem e quem é a mulher na relação?”, Que pergunta infame, acalmo-me e rebato com a pergunta: “Existe diferença entre ser homem ou mulher? Acredito que na nossa relações somos companheiros de jornada, mas se você vê diferenças adoraria saber quais são elas, quem sabe eu aprendo a ver diferenças que até hoje não vi.” Não entendo o porque das pessoas ficarem desconcertadas e não me apresentarem as diferenças entre o homem e a mulher dentro de uma relação amorosa, ou pelo menos a que elas acreditam que existam.
Historicamente observando os papéis de macho e fêmea nos primevos grupos de humanoides e nos animais atuais, vemos que às fêmeas cabem o papel da caça ou coleta e cuidados da prole, enquanto aos machos o papel de proteção ao grupo, isso em se tratando de grupos pequenos como o dos leões, para isso a seleção natural impõe ao macho a força física mas lhe retira a agilidade, enquanto premia a fêmea com agilidade e astúcia, quando os pequenos grupos de humanoides começaram a se agrupar o próprio número de indivíduos já bastava para a proteção do bando, restringindo a função do macho apenas a de fornecedor de sêmen, talvez por isso em primatas de grupos grandes as decisões caibam as fêmeas e aos machos apenas o papel de batedores quando da mudança de área de coleta.
 No ser humano o encéfalo desenvolvido permite o questionamento e a não aceitação da condição imposta pela natureza, ao menos de forma plácida, então talvez os machos ao se verem destituídos de quase todas as suas funções passaram a implantar a ideia de que eram superiores por sua força física e como a conciliação é uma característica muito mais presente na fêmea, talvez esta para não desagregar o grupo deixou que esta inverdade se propagasse, mas uma mentira dita por muito tempo acaba sendo aceita como verdade, aí nasce o machismo e disso advém a crença que tudo que é, mesmo erroneamente, atribuído ao macho seja superior.
Quanto a pergunta de ser passivo ou ativo, deveríamos primeiro nos perguntar o que é ser passivo? Ou o que é ser ativo? Por definição passivo seria o que se submete, o que deixa que decidam por ele, o que espera placidamente por decisões e apenas as acatas sem discuti-las enquanto uma pessoa ativa seria aquela que toma as rédeas da sua vida em suas mão, que não aceita nada sem antes questiona-las, que não espera as coisas acontecerem mas as faz acontecerem, que toma a iniciativa, mas observemos de onde vem as referências a passividade e a atividade em relação ao sexo, atribui-se normalmente o passivo ao feminino, pois o machismo nosso de cada dia impõe o papel de submissão à mulher, e mesmo no mundo LGBTT a misoginia campeia então o papel feminino é execrado, é tido como inferior, como desprezível, tanto que é muito comum vermos no movimento as frases: “que nada ela é passivona”, ou ainda “olha a cara de passiva dela” reproduzindo sem perceber a misoginia imposta pela sociedade hétero-normativa, envergonha-me a redução que é feita no papel sexual a apenas o coito, reduz-se o papel sexual a quem coloca o falo no orifício, que desprezível,o ato sexual é muito mais que apenas o coito, ele passa pelo olhar, pela carícia, pela sedução, pela palavra, se fossemos apenas analisar o coito seria como diria de forma hilária um grande amigo - “Passiva eu? Eu não - eu dou, eu chupo, eu cheiro, eu vou atrás do bofe, eu dou o bote, eu subo, faço pose de passista rebolando em carro alegórico, enquanto ele ta lá, apenas um corpo estendido na cama, passivo é ele que apenas coloca o pau duro, eu, eu sou a ativa eu tomo a decisão, minha bunda e meu cu é quem me faz poderosa e vitaminada”.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Uma piada é só uma piada, será mesmo? (por Otavio Zini)


“Uma piada é só uma piada e não deveria ser vista como algo tão danoso”. Com frases como estas tivemos o avanço do nazismo e outros movimentos discriminatórios, quando em 1989 após muita luta conseguimos a aprovação da lei anti-racismo, diversos setores da sociedade afirmavam que esta lei era inconstitucional pois violava o direito à livre expressão, já que piadas poderiam ser consideradas como racistas e estas deveriam ser consideradas apenas piadas “inocentes”, hoje, mais de 20 anos se passaram o direito a livre expressão não foi tolhido, o humor continua, apenas o humor em relação aos negros tornou-se mais inteligente e menos agressivo.
Hoje vem à baila o humor sobre os homossexuais e voltamos às mesmas justificativas, que é apenas humor, seria interessante quando vemos uma piada com homossexuais, que tenhamos o bom senso de trocar os papeis e ver o que acharíamos caso no lugar fosse colocado o negro ou o religioso ou qualquer outro grupo protegido pela lei anti-racismo, será que esta continuaria a ser vista como não preconceituosa?
Com o advento da Lei antirracismo passou-se a requerer uma maior visibilidade do negro na mídia e em outras posições, o que acarretou que este passasse a ser visto como alguém igual e não diferente, sei que isso atualmente pode soar como “forçação de barra”, mas para quem viveu essa luta sabe bem que o negro não era visto como uma pessoa comum, da mesma forma que os homossexuais (LGBTT) não são vistos como comum ou naturais hoje em dia, as pessoas não gostavam de estar com negros pois estes poderiam influenciar principalmente suas crianças, o casamento “inter-racial” já foi até proibido, sendo uma das alegações para sua proibição de como uma criança iria crescer tendo pais de “raças” (não falo em etnias pois na época era falado raça) diferentes, afirmavam que estas crianças cresceriam com traumas pois como os colegar encarariam elas e seus pais, interessante perceber que este mesmo argumento é usado hoje para adoção de crianças por casais homo afetivos.
Na época capeavam piadas ou ditos tais como “eu não sou preconceituoso com o negro mas eles estão querendo direitos demais” ou “eu não tenho nada contra negros mas daí a eles quererem casar com brancos já é um absurdo”.
Fico a imaginar se os negros ao invés de lutarem por seus direitos ficassem a esperar como muitos queriam sob a alegação de que a sociedade muda com o tempo, basta esperar. Será que realmente muda sem ações afirmativas? Será que em verdade os grupos dominantes não querem apenas nos convencer que muda apenas para manter sua dominação?
Outra pergunta surge, quais seriam os principais lugares para ações afirmativas? Uma das respostas mais óbvias é: na escola, mas como promover essa ação na escola? Capacitando professores, informando os alunos, demonstrando que não há nada de errado, ou feio, ou imoral ou mesmo antinatural na diversidade sexual, sei que para alguns podem dizer mas isso vai fazer com que nossas crianças se tornem homossexuais, interessante salientar que estes mesmos que afirmam estes absurdos são os que colocam a homossexualidade como antinatural, e se isso fosse verdade, não seria mais fácil a influência para a naturalidade? Os exemplos dessa normativa heterossexual não estão em todos os lugares? Porque eles não influenciam também? Seguindo este pensamento deveríamos imaginar que a visualização de crimes por nossas crianças ou o debate destes nas escolas iria influenciar nossas crianças a serem criminosas, a terem comportamento psicótico e não é isso que se observa.
Hoje por questões de tabu com o corpo e com o sexo promovemos uma alta taxa de egodistonia (quando os aspetos do pensamento, os impulsos, atitudes, comportamentos e sentimentos contrariam e perturbam a própria pessoa, como por exemplo num caso em que a pessoa é homossexual mas discorda desta sua característica, principalmente por pressão social) entre nossos jovens, que não expressam livremente sua sexualidade nem tem uma relação saudável com seus corpos, o efeito destes tabus sobre os corpos e mentes é tão danoso e imperceptível em primeiro momento e estão tão arraigados em nós que os perpetuamos sem nem saber o porque apenas por ato condicionado, por exemplo o que difere um homem sem camisa de uma mulher sem camisa? Salvo nosso tabu, mais nada, apesar disso vemos como feio ou “imoral” uma mulher com os mamilos a mostra enquanto achamos normal um homem com estes mesmos mamilos a mostra.
Alguns falam muito sobre a tão odiosa "promiscuidade", mas o que é essa promiscuidade? se é você ter domínio do seu próprio corpo, de sua própria sexualidade, ter domínio das expressões do seu corpo e não se dobrar sobre uma moral religiosa que só diz respeito a quem é religioso, se é amar apenas tendo como limites os aceitos por si próprio e por seu ou seus parceir@s eu desejo a todos muita promiscuidade.
O amor não me choca, o sexo muito menos, o que me choca e me revolta é a violência e a falta de amor e carinho e não falo apenas do amor e do carinho romântico mas o do esculachado que nos esquenta a coluna vertebral, nos faz suspirar, os nossos corpos são belos sempre independente de qualquer coisa, eles sempre tem sua beleza mas por tabus temos medo e impomos limites a visualização de nossos corpos, deixemos de hipocrisia, achar que um corpo desnudo é imoral é no mínimo uma idiossincrasia dos hipócritas.
Precisamos repensar os tabus sobre nossos corpos, sobre nossa sexualidade mas principalmente precisamos repensar nosso discurso para não reproduzirmos voluntária ou involuntariamente a discriminação camuflada sob a égide do humor.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Cântico Negro

Cântico Negro (José Régio)


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Acorda gente!!!!! (By Lunna Barreto Gomes & Otavio Zini)

Os homossexuais, hoje estão sendo caçados da mesma maneira que as feministas foram na década de 70 e 80, por lutarem contra a opressão machista em um mundo heteronomatizado. O homem hétero cristão já tem seus representantes no poder, Silas Malafaia, Bolsonaro e família, Magno Malta e tantos outros machistas que não aceitam que os homossexuais, nascidos com “privilégios” de dominação igualmente dados a eles, abram mão dessa vantagem, não exercendo o poder heteroxessista. Para estes senhores sexistas, as lésbicas também são uma grande ameaça, pois além de ignorar o domínio masculino perante o sexo e em suas relações afetivas, ainda na ideia deles ,tentam usurpar o direito que para eles é de sua natureza. A ideia é essa, desqualificar e demonizar a todo instante, os seus opositores, igual como fizeram com os movimentos feministas. Eles querem trazer de volta a pseudo família, a qual a mulher passa a ser submissa (submissão = Obediência, sujeição, humilhação, passividade, subserviência). Bem diferente de caminhar junto, como alguns religiosos tentam nos fazer engolir. Estas mentalidades retrogradas são muito bem representadas pelas, Caroline Celico e Sarah Sheeva e tão bem cultuadas ultimamente pela mídia, por suas declarações machistas e preconceituosas com a imagem da mulher. Meu povo nossa luta é contra o império sexista evangélico fundamentalista e toda esta mídia hipócrita e completamente sem noção, que prega que a mulher tem que ter submissão e ser objeto de prazer para seus maridos, sem o direito de opinar em nada, apenas abrir as pernas, arrumar a casa e cuidar da prole, que prega que o direito de ser feliz é somente do macho heterossexual.
Espanta-me como se articula o discurso que somos intolerantes, quando queremos fazer parar as agressões que sofremos, enquanto que eles não são intolerantes, nos agridem e nos colocam em uma condição de seres de segunda classe. Não podemos suportar isso, as questões de fôro íntimo só dizem respeito ao indivíduo. Por que dois homens ou duas mulheres se amarem incomoda tanto? Não pedimos para que os heterossexuais passem a ser homossexuais, apenas pedimos para sermos respeitados, para sermos cidadãos com plenos direitos nem mais nem menos, observamos um discurso que hoje esta na moda ser gay, por isso vemos tantas pessoas se dizendo gays, isso é uma mentira, não existe moda para o que não se escolhe e nem pode ser mudado. Apenas cansamos de nos esconder para satisfazer essa classe opressora e lutarmos por respeito como fizeram e fazem outras classes oprimidas. Chega de intolerância e usurpação de nossos direitos básicos, queremos ser cidadãos e queremos já.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

gays e uma infância devastada por ELIANE BRUM

Um homem adulto narra seu percurso de dor para assumir sua sexualidade. E conta como, para se proteger, participou de atos de bullying na escola contra seu melhor amigo

Eliane Brum
Jornalista, escritora e
documentarista. Ganhou mais
de 40 prêmios nacionais e
internacionais de reportagem.
É autora de um romance -
Uma Duas (LeYa) - e de três
livros de reportagem: Coluna
Prestes – O Avesso da Lenda
(Artes e Ofícios), A Vida Que
Ninguém Vê
(Arquipélago
Editorial, Prêmio Jabuti 2007)
e O Olho da Rua (Globo).
E codiretora de dois
documentários: Uma História
Severina e Gretchen Filme
Estrada.
elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum
Da infância, somos todos sobreviventes. Alguns mais do que outros. Esta é a história de um homem em busca de compreender a si mesmo. E de tentar, como adulto, ser diferente do menino pelo poder da narrativa. Esta história é contada aqui porque foi a nossa ignorância – a minha e também a sua – que destroçou a vida dessas duas crianças. E tem destroçado – às vezes em brutal literalidade, com tiros e pancadas – a vida de muitos – demais.
Antes, a história de como nos conhecemos. Ele me enviou o primeiro email no início de dezembro. Um amigo dele acabara de ser assassinado por homofóbicos, e ele tinha se deparado com uma campanha na internet que arregimentava pessoas a se unirem para executar homossexuais. Ele tinha medo de sair de casa. Estava assustado. E também com raiva. Pedia que eu denunciasse a campanha nesta coluna.
Respondi que escrever sobre esse tipo de manifestação era amplificar uma voz de ódio. Afinal, o sonho de quem divulga algo na internet é ser acessado, replicado, comentado, seguido, citado. Em vez disso, propus a ele que me contasse a sua história para – talvez – publicá-la aqui. Contar uma história que nos aproxime é a melhor resposta que podemos dar a quem usa as palavras para aumentar as distâncias.
Desde então, iniciamos uma correspondência. Chequei a sua identidade, mas respeitei sua decisão de ocultar seu nome. Nessa narrativa real, vamos chamá-lo de Pedro. Filho único de uma família de classe média do interior de Minas, Pedro tem 28 anos, é engenheiro ambiental e hoje vive sozinho em Goiânia. Um brasileiro como tantos outros, que trabalha duro e paga seus impostos. Todo ano ele participa da parada gay, mas não é o que se poderia chamar de um militante do movimento. Em Goiânia, assume sua homossexualidade em todos os espaços – e também no trabalho. Mas preferiu se afastar da família a contar que era gay. Neste Natal, como veremos mais adiante, ele fez um pequeno grande gesto.
Aos poucos, ao longo da nossa troca de cartas virtuais, percebi que não se tratava apenas da história de Pedro. Mas da história de Pedro e de João. Quando era criança, o melhor amigo de Pedro era João. E era João quem não conseguia esconder dos colegas de escola que era gay. Pedro posicionou-se ao lado dos mais “fortes”, como tantos de nós a vida toda, e mais ainda na infância. Alinhou-se ao lado dos pequenos machos quando eles tornaram a vida de João um inferno humano. Tão humanamente infernal que ele acabou mudando de cidade no início do ensino médio. Como acontece ainda hoje em muitas escolas, nem professores, nem pais, nem colegas, ninguém fez gesto algum na direção de João. Todos permitiram, por ação ou omissão, que João fosse agredido, acuado, encurralado e, por fim, exilado.
Essa memória assombra Pedro até hoje. Como a maioria de nós, ele queria ter sido mais forte na infância. Não mais “forte” como os pequenos machos, tão atrapalhados com sua sexualidade que precisavam “denunciar” a do outro. João queria ter sido tão forte quanto Pedro, que ousava ser. Se tivessem sido os dois, talvez pudessem ter resistido mais. Mas, por muito tempo, Pedro mal pôde consigo mesmo. E então, quando ele já tinha sua própria vida adulta e independente, um de seus melhores amigos foi assassinado porque era. Gay. E Pedro, de novo, sentiu-se muito impotente.
Contar sua história talvez seja a forma encontrada por Pedro para inverter o curso dessa memória dentro de si. Pronunciar o que virou silêncio sem ser – e por assim ter sido tanto o feriu. A ele e a João, antes que ambos pudessem se defender. Quando pergunto sobre esse círculo que se fecha, Pedro escreve: “Acho que vai me incomodar pelo resto da vida”.
É espantosa a quantidade de dor que pode caber numa vida apenas por causa da ignorância. Da nossa ignorância. A história de Pedro – e também a história de Pedro e de João – é assim.

O começo: ou como Pedro expôs João para que não o descobrissem 
“Nasci numa cidade do interior de Minas com 80 mil habitantes. Pequena, conservadora, cheia de falsos moralismos. Desde muito cedo eu percebi minha orientação sexual. Desde criança achava os meninos mais interessantes do que as meninas. Sempre pensei que no órgão sexual feminino faltava alguma coisa. E tinha curiosidade para ver o órgão sexual dos meus amigos. Mas nunca fui muito sexualizado na infância e nem mesmo na adolescência. Talvez evitasse a sexualidade pela consciência da minha orientação sexual.
Ainda no colégio, eu era uma pessoa extrovertida e comunicativa, mas quando percebi que havia algo de diferente, tornei-me recluso. Sempre estudei no mesmo colégio, com a mesma turma. Desde o início, tinha um colega que conseguia disfarçar menos sua homossexualidade e, para continuar pertencendo ao grupo, eu participava de ataques de bullying homofóbico. Estes eram os momentos nos quais eu me sentia pior.
João sempre estudou na mesma turma que eu. Éramos muito amigos na infância, nossas mães eram amigas e ambos éramos filhos únicos. Ele frequentou a minha casa e eu a dele, brincamos muito na infância, éramos os melhores amigos. Apesar de ser um ano mais velho do que eu, João não aparentava, porque sempre foi muito sensível e delicado. O fator ‘não jogar bola’ influencia muito o que as crianças pensam quanto à sexualidade de outra. E João não jogava.
É engraçado. Nunca trocamos uma palavra sequer em relação ao sexo. Ao menos, não que eu me lembre. Jogávamos muito videogame juntos, e geralmente ele passava pela manhã em minha casa para irmos ao colégio. Não sei bem explicar como, mas nossa relação e encontros foram tornando-se esparsos, até que nos tornamos meros colegas de sala. Ele passou a ser um garoto solitário, menos risonho. Aproximou-se mais das garotas e adquiriu ‘trejeitos’, que talvez sempre tenha tido, mas que somente com o amadurecimento e a consciência do mundo eu e os outros garotos começamos a perceber.
Eu tinha 12 ou 13 anos nessa época. Acho que, por pertencer a uma família que preserva bastante as tradições mineiras, na qual era comum escutar comentários homofóbicos e até mesmo racistas, eu tinha o preconceito internalizado de que a homossexualidade era algo errado. E é muito estranho ser ‘errado’. Eu não tinha com quem conversar, eu não tinha com quem dividir meus desejos. E acho que foi a fase na qual eu tive mais medo na minha vida. Era um medo de tudo, um medo de mim.
Adquiri repulsa por alguém que eu imaginava ser a pessoa que mais se assemelhava a mim. Julgava-o sujo. Era como se o distanciamento que criei com ele disfarçasse a minha sujeira. Não sei bem ao certo, mas em virtude de suas maneiras mais delicadas, nós, os meninos, simplesmente deixamos de conviver com ele. Não sei como surgiram os primeiros episódios de bullying. Mas, aos poucos ele começou a ser motivo de chacota na sala e, em pouco tempo, de todo o colégio.
Crianças e adolescentes têm uma maldade que eu não entendo. Todos os dias escrevíamos no quadro seu apelido: “João viadinho”. A situação de bullying era clara. Ele sofria muito, era perceptível. Quando cruzávamos com ele, ríamos e imitávamos trejeitos femininos. Os meninos da sala não o tocavam, pois, caso isso ocorresse, pegariam ‘viadice’. Imagino o quanto isso foi dolorido para ele.
Logo, ele começou a permanecer todo o recreio dentro da sala de aula. E as agressões passaram do campo das palavras para o físico. Em suas tentativas de revide, ele levava tapas, socos e pontapés. Eu não cheguei a fazer isso. Mas, os outros garotos, sim. Quando ele passava pelo corredor, próximo ao grupinho dos ‘machos’, além de um ‘E aí, viadinho?’, ele levava sempre uns bons tapas, e sempre havia algum engraçadinho para sair rebolando atrás dele. Eu nunca o olhava nos olhos. Sentia muita vergonha.
É uma dinâmica estranha. Você tem que pertencer a um grupo, e ser diferente te exclui. Hoje, entendo que muita daquela repulsa estava relacionada a um certo grau de atração que eu sentia por ele. E aquilo para mim era errado. Os professores nunca tomaram nenhuma atitude. Ninguém nunca tomou nenhuma atitude. Escutei trechos de uma conversa de minha mãe com a mãe dele em relação à sua sexualidade, mas não consegui entender muito e não fui capaz de tocar no assunto. Até hoje não consigo compreender como fui capaz de ter feito tudo aquilo. Sei que fui muito covarde. Porque, no fundo, eu sabia pelo que ele estava passando. E nunca lhe estendi a mão.  
Quando você se descobre gay – o que faz você se sentir diferente da maioria –, isso faz com que, de uma maneira inconsciente, você lute para ser igual. É uma resistência interna, uma forma estranha de luta entre o ‘você aparente’ e o ‘você real’. Eu tinha aversão ao meu corpo, a toda e qualquer coisa relacionada à sexualidade. Qualquer programa de TV, livro ou texto que se referisse à sexualidade me causava pânico. Eu não passei pela fase comum aos adolescentes, na qual a masturbação é uma atividade comum. Eu sentia medo, pois era nessas ocasiões que eu tinha a certeza de que realmente era homossexual.
Não é somente seu ciclo social que é quebrado através da fase de reclusão. Dentro de você é como se o fator sexualidade também fosse rejeitado. Sexo assusta. O que não se aceita é melhor que fique escondido. Acho que senti repulsa por João ao perceber que alguém tinha uma aceitação maior consigo mesmo do que a que eu tinha para comigo. Eu conseguia reprimir, então era difícil aceitar que aquela pessoa não conseguisse.
Eu nunca o defendi. Tinha medo de que toda aquela repulsa se voltasse contra mim. João saiu da escola e da cidade no final do primeiro ano do ensino médio. Mudou-se para Uberlândia (MG). Nesse meio tempo, acho que até mesmo por um grande peso na consciência, foi a minha vez de me afastar. Tranquei-me no quarto e não queria sair de lá.”

Pedro se esconde – até de si mesmo 
“No segundo ano do ensino médio, minha consciência da orientação sexual atingiu seu ápice. Eu não conseguia mais me esconder muito e tinha muito medo da reação das pessoas. Forçava-me a pensar somente em meninas, mas já não conseguia mais fazer isso. As Playboys, compradas escondidas pelos amigos, não me interessavam nem um pouco. Eu me excitava justamente pensando na excitação dos meus amigos diante daquelas imagens.
Foi uma fase muito difícil. Eu inventava um monte de histórias para não ir ao colégio, me afastei de tudo e de todos. Minha vontade era ficar trancado no quarto para que ninguém pudesse me ver. Acho que, no fundo, eu estava me punindo pelo meu comportamento errado frente à sexualidade de João. Não sei bem o que seria depressão, mas, se por algum momento da minha vida passei por isso, foi justamente nesse ápice de consciência.
Lembro que chegava a me mutilar. Tinha raiva de mim, de minha imagem. Tinha nojo do meu órgão sexual e de qualquer ereção eventual. Eu evitava levantar da cama, tinha muito sono, não queria conviver com ninguém. Lia bastante, muito, mas muito mesmo... Nessa época li tudo de Dostoiévski, Tolstói. Um personagem em especial me acompanhou pela vida inteira: Kirilov, do livro ‘Os Demônios’, de Dostoiévski. Ele dizia algo como: ‘Deus é o medo de depois da morte’.
Foi nessa época que minha mãe percebeu que tinha algo de errado comigo e me mandou para um psicólogo. Mas não tive nenhuma afinidade com ele. Não podia confiar em alguém que minha mãe pagava. Ali, no consultório, eu ajudei a moldar ainda mais meu personagem, pois tinha que tentar me desvencilhar de alguém que, teoricamente, estaria preparado para fazer uma leitura das pessoas. Lembro vagamente de que, na primeira consulta, ele afirmou: ‘Sua mãe me disse que você tem andado triste e tem ficado muito tempo trancado no quarto. E aí, o que está acontecendo?’. Senti-me pressionado. Depois dessa experiência, nunca mais voltei a psicólogos.

Aos 15 anos, eu estava tão solitário que pensei em parar de estudar ou mudar de colégio. Se as pessoas que conviviam comigo soubessem de alguma coisa, meu mundo poderia acabar. Não frequentei nenhuma das festinhas de 15 anos de minhas amigas, não fui à festa alguma, não fui adolescente. Nesse período de reclusão, eu passava o fim de semana todo trancado no meu quarto. Por um lado foi bom: estudei muito e não tive nenhuma dificuldade para passar no vestibular. Acho que é essa reclusão, causada pela dificuldade de autoaceitação, que faz com que muitos dos gays sejam bem sucedidos nos estudos. É como se perdêssemos um período da vida social e buscássemos nos livros um afago.”

Pedro tenta fugir – mas não há fuga de si mesmo 
“Passei em três universidades federais. A minha escolha foi pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), não porque era meu curso predileto, mas sim porque Ouro Preto era a cidade mais distante da casa de meus pais. Com 17 anos mudei-me para Ouro Preto, pensando que tudo seria diferente. Não foi. Cursei engenharia numa cidade que priva pelo tradicionalismo, convivendo em repúblicas com cerca de 15 homens. Todos, ao menos aos olhos da comunidade universitária, heterossexuais.
 Bem no início do curso, eu presenciei uma cena que me trancou ainda mais dentro do armário: um dos moradores de uma república vizinha à minha, líder estudantil, influente no meio acadêmico, foi flagrado contando à empregada da casa que tinha um caso com outro estudante. O apelido dele tornou-se sinônimo de gay no ambiente universitário. Os outros moradores da casa nem pestanejaram: jogaram todas as coisas dele para fora da casa. Nem se deram ao trabalho de ouvir um cara que havia morado com eles nos últimos quatro anos. Foi muito estranho ver as coisas dele jogadas no chão da famosa Rua Direita.
Eu era um adolescente exemplar. Nunca tinha bebido, nunca tinha usado drogas. Era virgem, nunca beijara ninguém. Nessa época, comecei a viver em uma história inventada. Para me inserir em um grupo, eu comecei a usar um disfarce. O ‘porra-louca’ heterossexual. Beijava meninas, mas tinha muito medo de que alguma delas quisesse algo mais. Comecei a beber muito e a ser usuário de maconha e, mais tarde, de cocaína. Era uma fuga, era um jeito de ser querido por um grupo, era uma forma de estar inserido. Era ser comum. E assim foi durante cinco anos. Anos lentos, intermináveis.

Uma colega de sala foi a primeira pessoa que soube de minha homossexualidade, já no final do curso. Foi uma explosão. Era como se eu estivesse tirando o maior peso do mundo de minhas costas. Só consegui dizer: ‘Sou gay’. E comecei a chorar sem parar. Era um misto de medo da reação e de alívio indescritível. Pela primeira vez eu tirava a minha máscara para um outro ser humano.
Formei-me na universidade em 2006, com 22 para 23 anos. Era virgem, escolado no submundo do álcool e das drogas. Antes de me mudar de Ouro Preto, reuni todos os 15 rapazes que moravam comigo na república. Eu não queria sair daquela casa tendo omitido quem eu realmente era. Nessa reunião, completamente drogado, eu vomitei, com certa raiva de mim e de tudo, que eu era gay e que aquilo era o mínimo que eu podia fazer por pessoas com as quais eu convivi.
Logo após um silêncio, nada convencional, eu presenciei as mais distintas reações. De ódio a apoio. Há pessoas com as quais nunca mais troquei palavras. Mas também recebi um carinho que eu não imaginava que fosse possível. Descobri que, apesar dos revezes, eu encontraria pessoas que não encaravam aquilo como aberração. Acho que aquele momento foi fundamental para que eu pudesse encarar a vida. Eu nunca tinha encostado em um homem, eu nunca tinha tido uma relação verdadeira. Na verdade, acho que toda a minha felicidade era falsa.”

Pedro tira a máscara – arranca-se de si 
“Passei em um concurso público estadual e fui trabalhar em Uberlândia. A independência financeira é muito importante para um homossexual, significa o primeiro momento em que não é preciso dar satisfação a ninguém sobre o que você sente. Fui para Uberlândia com a pretensão de viver.
Logo no primeiro fim de semana, resolvi ir até uma casa noturna GLS. Era 4 de agosto de 2006. Recordo a data porque até hoje mantenho o folder (propaganda da casa). Esse folder é como se fosse a minha Lei Áurea. Representa a minha liberdade.

Minha noite foi tragicômica. Hoje dou muita risada ao lembrar. Eu era um gay ‘não gay’. Logo, fui com uma roupa inadequada, social demais. Não conhecia nenhuma música, afinal vivia ouvindo rock e nem imaginava quem era Britney Spears. Não consegui disfarçar minha surpresa ao ver todas aquelas pessoas descoladas e felizes, de mãos dadas. Era como se aquelas mãos dadas me hipnotizassem, era absolutamente sensacional cada flagra de beijo. Os transexuais, travestis e drag queens me assustavam, era como se tivesse que manter distância. Afinal, até aquele dia, era isso que a vida tinha me ensinado.
Cheguei bem tarde, depois de ter dado várias voltas no quarteirão, por medo de ser identificado nas proximidades daquele ambiente. No lounge, sozinho, atento aos diálogos alheios, me impressionava o caos relativo ao gênero: ‘amiga’, ‘bicha’. Minha primeira visita ao banheiro foi hilária. Entrei e saí correndo. Era um misto de medo, tesão, tensão, apreensão e uma felicidade doida. Nem imagino o que as pessoas pensavam daquele cara que passou a noite inteira sentado numa cadeira do balcão, atento a tudo, surpreso e com um sorriso estampado no rosto. Quando se aproximavam de mim ou percebia um flerte, eu me esquivava e de certa forma corria. Lembro que naquele dia nem dormi direito relembrando cada momento.
Na noite seguinte, não resisti e voltei à mesma casa noturna. Nessa segunda noite, mantive um diálogo com o bartender. Talvez, pela ansiedade, tenha bebido muito e isso tenha feito com que baixasse a guarda e permitisse que as pessoas se aproximassem. Fiquei até muito tarde. O bartender veio, então, conversar comigo. Não lembro ao certo, mas acho que falei muita besteira. Eu suava frio, tremia. Acho que, percebendo meu estado alcoólico, e depois de saber que aquela era a minha segunda noite num ambiente gay, ele arriscou um beijo. 5 de agosto de 2006: aos 22 anos, eu fui beijado pela primeira vez por um homem.
Aquilo foi muito para mim. Afastei-o, não me despedi e saí o mais rápido que pude daquele lugar. Senti repulsa pelo meu corpo, senti nojo de mim. É estranho, mas foram sensações completamente antagônicas, uma oposição entre o meu desejo e o que a sociedade me imprimiu. Ao mesmo tempo que era prazeroso, eu sentia rejeição pelo fato de estar beijando um homem. Apesar de ser meu maior desejo, era algo que eu tinha aprendido ser inaceitável.
Em casa, escovei os dentes diversas vezes. Como se aquilo pudesse apagar meu ato, como se fosse possível redimir o meu ato. Por quê? Porque eu fui ensinado assim. Porque fui criado num berço católico no qual minha recente atitude era pecado. Eu era uma aberração.
Como filho único, eu também sentia vergonha por ser uma decepção muito grande para a minha mãe, que sempre teve a expectativa de ter netos. Naquela manhã, eu era o maior lixo do mundo. Abusei ao extremo do uso de cocaína, associada ao uso de ansiolítico. E o que me deixava pior era a sensação: ‘Tinha sido muito bom’. Chorei muito.
Não sei ao certo, mas acho que por dois ou três meses retornei à minha reclusão. Passava os finais de semana em casa, reprimindo meus desejos. Mas nada pode ser reprimido para sempre.
Depois de uma festinha de aniversário de uma colega de trabalho, num local próximo à casa noturna que já tinha frequentado, eu criei coragem e, após contornar diversas vezes o quarteirão, entrei. Receoso, troquei olhares com o bartender. Encarei, flertei, fui retribuído. O tempo demorou a passar e já era quase dia quando ele pôde sair do bar e vir ao meu encontro. Dessa vez, fui eu que tomei a iniciativa e o beijei. Dessa vez, eu não fugi e aquela meia hora em que ficamos juntos foi a primeira vez que um cara de 23 anos estava aceitando a si mesmo. Era a primeira vez que eu podia dizer que estava realizado, feliz.
Depois daquela noite, passamos a nos encontrar em todos os finais de semana. Mas, sozinho em casa, depois dos beijos, eu ainda me sentia angustiado e estranho. Tive a sorte, porém, de ter encontrado uma pessoa fantástica, que respeitava as minhas restrições. E elas eram muitas. A primeira vez em que permiti algo mais íntimo foi após dois meses de encontros, fim de semana após fim de semana. Meu namorado só começou a frequentar a minha casa após três meses de relacionamento. Ele compreendia, mas não deixava de ficar chateado com tamanho recalque. Cobrava sexo, mas eu tinha muito medo. Estávamos juntos havia cinco meses quando, pela primeira vez, ele foi dormir comigo. E foi a primeira vez que tivemos uma relação sexual. Era também a primeira relação sexual da minha vida.”

Pedro descobre que não o perdoam por ser 
“Mesmo trabalhando para um órgão que, a princípio, deveria privar pelo cumprimento das leis, eu já sofri homofobia. Sinto um certo afastamento por parte de algumas pessoas simplesmente pelo fato de eu não querer me esconder mais. Minhas opiniões e minha qualidade técnica são diminuídas por causa da minha orientação sexual. Por quê? Ser gay me tornou menos competente?
Sinto raiva de uma sociedade que tem medo de ver beijo gay na novela das oito, mas que se delicia assistindo às piores atrocidades nos noticiários sensacionalistas. Fico me perguntando: por que eu incomodo tanto? Por que gostar de alguém traz tanta violência? De onde vem esse ódio?
É muito difícil compreender por que a comunidade evangélica, por exemplo, é capaz de perdoar a assassinos ou bandidos que se converteram à religião e não aceitam que eu caminhe de mãos dadas com meu namorado pela rua. Qual é o crime de se caminhar de mãos dadas pela rua?
Há pouco perdi um de meus melhores amigos e sei que seu assassinato ficará impune. Estamos no Brasil e não vai ser a primeira vez que um crime ficará impune. Pior ainda se são crimes de homofobia ou crimes que a nossa homofobia internalizada não permite que sejam investigados.
 Uma vez eu fui vítima de um golpe conhecido como ‘Boa Noite Cinderela’. Apesar de todos os protestos de que não devia fazer um B.O. (boletim de ocorrência), fui até uma delegacia. E lá realmente desisti de fazer o B.O.. Nunca fui tão humilhado em toda a minha vida. O policial que me atendeu teve uma crise de riso enquanto eu relatava o caso. Aposto que não seria esta a reação caso o evento tivesse ocorrido com um macho alfa. Eu desisti de denunciar, voltei para casa e me senti a pessoa mais impotente do mundo.
Em outra oportunidade, vi um grupo de adolescentes na saída de uma festa GLS agredindo um garoto que aparentava estar muito bêbado. Novamente, apesar dos protestos de um namorado da época, interferi e acabei me dando muito mal. Apanhei um pouco, pois nem tenho porte físico para enfrentamentos e, quando a polícia chegou, os três adolescentes foram protegidos, e eu quase fui parar na delegacia. Segundo os policiais, eu estava gerando desordem.
Já perdi a conta de quantos amigos, em Goiânia ou em Uberlândia, já sofreram agressões na rua por serem gays. Ao tentar denunciá-las, as vítimas foram ridicularizadas, e os agressores liberados. Eu não tenho mais coragem de procurar a polícia para denunciar qualquer forma de preconceito. Vivemos no nosso mundinho, disfarçados. Vivemos num ‘gayto’.”
 
Pedro aproxima-se dos pais – que não sabem (ou fingem não saber) que é 
“Distanciei-me dos meus pais há muito tempo. E continuei cada vez mais distante. Morando há três anos e meio em Goiânia, eles nunca tinham vindo me visitar. Neste final de ano, pela primeira vez, eu convidei-os a passar o Natal na minha casa. E eles vieram. Acho que minha pequena atitude abriu uma brecha para novamente possuir uma família, possuir um colo de mãe.
Não que meu Natal tenha sido maravilhoso. Na verdade, foi cheio de conflitos. Eu e minha mãe nos desconhecemos por completo. Eu e meu pai nem nos falamos, e então surgem diversas divergências. Eles chegaram no dia 23 de dezembro, à noite, e foram embora no dia 25, pela manhã.
Na tarde de Natal, descobri uma cartinha que minha mãe tinha deixado sobre o sofá. Transcrevo aqui um trecho: ‘O que mais queremos é a sua realização em todos os sentidos, pois, de qualquer forma, você é nosso único tesouro e não queremos continuar dessa forma. Infelizmente, precisamos te conhecer melhor. E saiba: seja qual for a circunstância, estaremos com você. Você sabe que não podemos adiar o que queremos, ainda mais que já estamos em contagem regressiva. Espero que leia umas várias vezes essa recomendação. Se não quiser comentar sobre ela falando, me escreva e me conte um pouco de você. Beijos. Te amamos muito. Mãe e pai’.
Tenho passado esses últimos dias pensando em qual seria a melhor forma de contar tudo de mim para meus pais. Mas ainda não descobri como. Já tentei escrever uma carta umas dez vezes, mas, ao final, rasgo tudo. Como se o que estivesse escrito ali fosse algo que tivesse o poder de torná-los extremamente infelizes."

O meio: ou como Pedro reencontra João no gesto possível 
 “Eu era só um menino, mas foi com João que senti remorso pela primeira vez, que tive consciência do que é covardia. Voltei a encontrá-lo em nossa cidade do interior mineiro em algumas poucas oportunidades. E em todas elas não fui capaz de me reportar a ele. João assumiu sua homossexualidade, e não posso esquecer os comentários maldosos de minha mãe, com suas amigas. Eu sentia raiva.
João tornou-se arquiteto. Quando me mudei para Uberlândia, vivíamos na mesma cidade e ainda hoje temos alguns amigos comuns. Mas nunca dividimos uma roda de amigos. É um somatório de minha vergonha e da sua mágoa. Para alguns dos amigos em comum, eu contei toda a história. Segundo eles, ele nunca mencionou o assunto.
Uma noite, identifiquei-o numa boate GLS. João havia se tornado um homem extremamente efeminado, mas muito lindo. Estava rodeado de amigos e, assim que tive oportunidade, eu o abordei. Entendo completamente as poucas palavras que ele dirigiu a mim. Havia mágoa na forma como ele me tratou, e eu compreendo a sua postura. Não toquei no assunto. Senti muita vergonha e, assim que pude, me afastei. Não consegui pedir desculpas. Algum tempo depois eu soube que João havia se mudado para a Austrália. Não sei se um dia voltarei a vê-lo”.